As Quatro Voltas (Le Quattro Volte), de Michelangelo Frammartino (Itália/Alemanha/Suíça, 2010)

abril 5, 2013 em Em Cartaz, Rafael C. Parrode

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A narrativa do invisível
por Rafael C. Parrode

Basicamente, o que define o existencialismo enquanto postura filosófica é a sua ênfase na natureza da liberdade humana e suas reminiscências metafísicas e ontológicas. O existencialismo transcende o humano, engloba a forma como os seres (de todas as espécies) se relacionam com o mundo, como eles se relacionam entre si, como estão todos interligados através do cosmos. Esteticamente, isso se traduz a partir de uma percepção e de uma conexão profundas com o mundo e que revelam o que está por detrás da imagem, invisível, imperceptível. As Quatro Voltas é, nesse sentido, uma verdadeira lição ontológica, equação milimetricamente calculada para captar o que não é passível de ser filmado. As panorâmicas ensaiadíssimas utilizadas por Michelangelo Frammartino não estão voltadas em primeiro plano para os homens, animais ou árvores de um determinado lugar. O controle e a marcação absoluta da mise en scène buscam registrar uma energia cósmica, devastadora e invisível que flui de corpos em corpos, promovendo o movimento da vida. O que está em jogo é a sua relação com o mundo e sua percepção aguda de o que não se pode ver, e que está ali onipresente e inabalável. Frammartino parece querer filmar a alma das coisas, um fluxo energético que transita entre os corpos e que só se materializa quando em combustão, libertado junto das cinzas do corpo cremado que se desfaz e se dissipa no ar.

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É interessante que o dispositivo utilizado por Frammartino seja tão rigoroso e minucioso em sua economia e precisão, para que, no final das contas, o que ele encontra seja a mais absoluta e pura reflexão sobre o insondável, sobre o que não se limita, o que não tem forma. É a tal liberdade controlada dos existencialistas que Frammartino incorpora em seu filme, buscando acima de tudo uma representação do invisível, uma forma de colocar as coisas no mundo, e que faz emergir o que está para além do que está materializado na imagem.

Não à toa, Frammartino constrói seu filme sempre delineado pelo peso da representação de crenças e mitos seculares que se instauram no cotidiano de uma pequena vila na Calabria. Há, é claro, uma enorme perspectiva católica nessa observação da preparação e execução de duas festas tradicionais: a Paixão e de Cristo e o Festival da Árvore – quando se corta a árvore mais alta e forte da floresta, e seu tronco é levado para a vila para a celebração da chegada da primavera. Mas o que interessa aqui não é o peso histórico do catolicismo em si, mas a religião (qualquer uma) como mera representação dessa crença absoluta no invisível e na existência de um Deus como algo que transcende a própria vida. Frammartino parece interessado na representação desses eventos e em como eles se materializam enquanto espetáculos no subconsciente daquela vila. Quando da encenação do martírio de Cristo pelas ruas da cidade, por exemplo, Frammartino logo abandona o teatro para se voltar para o movimento interno das coisas que surge a partir do rebuliço causado pelo cachorro junto às cabras e aos passantes da festa. O que está em jogo não é o teatro da representação, mas o que o motiva, o que está por detrás dele. A câmera tem o papel de materializar essa ligação fenomenológica existente entre os seres.

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Para isso, a relação com os espaços e a maneira como eles interagem com a passagem do tempo e com os seres são centrais em As Quatro Voltas. E quando se fala em tempo aqui, não se trata apenas da duração dos planos – ainda que isso faça parte dos mecanismos utilizados por Frammartino para captar o invisível. Há, por exemplo, um close no rosto do velho pastor de cabras, enrugado, com uma barba esparsa por onde caminha uma formiga perdida. O tempo está impregnado no próprio plano, no próprio enquadramento. E é o movimento do tempo que norteia o percurso de quatro personagens bem definidos na narrativa: o velho moribundo, a cabra recém nascida, a árvore gigante, e o carvão que vira pó.

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O filme não faz distinções entre estes seres, acompanhando com a mesma calma e paciência a via crucis de cada um dos personagens pela vida. As histórias estão ligadas sempre pela morte e pelo renascimento, com a diferença que se renasce como outro ser, não necessariamente como humano. A ressurreição e a crença na reencarnação ganham contornos metafísicos. São as almas que transmigram de corpos em corpos, seres em seres, acima de tudo vivos. Por isso, Frammartino estabelece uma dialética entre o visível e o invisível: uma maiêutica que busca “dar à luz” uma verdade no interior das coisas e dos seres. Sua relação com o mundo se dá de maneira tão plena e complexa que o diretor chega a filmar o plano de uma cabra olhando para o alto, e seu contracampo subjetivo enquadrando o céu, repleto de nuvens navegando lentamente pelo infinito.

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Frammartino costuma afirmar que realiza seus trabalhos sob a perspectiva da “aporia”, visitando lugares que lhe propõem dúvidas e incertezas, sem um rumo definido, e a partir daí buscando registrar uma cosmovisão livre das coisas que o rodeiam, sem um mote ou uma predefinição do que se deve ou não filmar. A “aporia” é um processo dialético em que se designa uma dificuldade que ocorre na especulação filosófica, a dúvida objetiva, uma certa ignorância, um acorrentamento que obriga à exploração de diversos caminhos, uma investigação dos conceitos em busca de uma resposta que parece insolúvel. Na filosofia grega, o termo diz também respeito ao argumento de Zeno e Eléia sobre a multiplicidade do ser e do movimento (Aquiles e a Tartaruga). O propósito de Zenão e Eléia consistia em defender a doutrina de Parmênides que exigia a negação do movimento real e a afirmação de que todo o movimento é ilusório. Se há um movimento real, ele não pode ser visto e nem percebido, e é este o movimento perseguido pelo filme.

Nesse sentido, em As Quatro Voltas, Frammartino não trabalha a partir de um roteiro definido. Seu filme nasce das indagações que surgem do seu convívio em determinados lugares e que só serão deflagradas a partir de uma percepção pura e cristalina do cotidiano do mundo, que não é o cotidiano das grandes cidades e dos grandes centros, que não é o cotidiano do homem. É uma verdade que está na natureza, flutuando no ar, e que é cada vez mais imperceptível pela sensibilidade do homem. O trunfo e o maravilhamento de As Quatro Voltas se dá exatamente porque Frammartino não constrói seu filme como um fetiche, não se rende a um maneirismo vazio como no cinema de um Carlos Reygadas por exemplo, no qual a tentativa de registro do sublime dá lugar a um exibicionismo maneirista, reduzindo-se a um mero deslumbre da técnica. Em As Quatro Voltas, o deslumbre se dá pelo não ser, pelo estar, pelo que se move transitando entre tudo o que permanece, tudo o que existe. A técnica é mera engrenagem para que se torne visível algo que paira oculto e misterioso pelo mundo.

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