Animal Político, de Tião (Brasil, 2016)

fevereiro 9, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

* Cobertura da 19a Mostra de Tiradentes

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A forma do mundo, o mundo da forma
por Juliano Gomes

Entre as duas palavras do título deste primeiro longa de Tião, a mais importante é, sem dúvida, “político”. O que se desenha na tela é uma personagem que permita o questionamento de sua relação com o que chamamos de sociedade. Uma fábula curiosamente clássica (animais que agem como humanos, discutindo questões morais) sobre o desencaixe e sobre a busca pela transcendência do comum – tal definição parece caber tranquilamente a Animal Político. A premissa temática – o embate homem versus sociedade – demanda uma perspectiva que reconfigure este gênero histórico da narrativa do ocidente. O que se passa é um trajeto, uma pequena odisséia pela qual este personagem principal realiza encontros, motivado pela sua busca de sentido para a sua vida. O centro dessa procura é entender se há algo além, um princípio externo, que justifique isso aqui.

Esta idéia de político não está somente na relação constante indivíduo-grupo, ou indivíduo-coletividade, mas também na forma. Primeiro, isso se dá na escalação de uma vaca para a maioria das cenas do personagem principal. Ao contrário de todo um campo que atualmente busca investigar as formas de subjetividade dos animais, o que está em jogo neste filme é o homem. A vaca importa na medida em que parece com um homem (tem olhar, portanto, produz expressão) e desloca os sentidos, fazendo com que esse outro mamífero signifique os homens em geral e não uma pessoa específica (a presença dos homens sem cabeça reafirma isso). O filme se alimenta da estranheza causada pela neutralidade da expressão da vaca em relação ao texto em voz over dito de maneira melancólica. Tal voz parece representar uma espécie de pensamento, locus onde se dá essa busca de sentido.

A distância entre o que se diz e o que se vê dá energia para o filme, ao menos em seu terço inicial. A introdução da vaca no universo de classe média alta comum realiza uma gag que, com o passar do temo, naturalmente se desfaz. A mistura entre fábula filosófica e comédia irônica fundamenta o tom do filme. Seus momentos de maior intensidade parecem ser aqueles em que essas duas forças atuam decisivamente, como o encontro com o robô em stop motion no deserto ou a seqüência dos homens sem cabeça. Quando algum desses eixos diminui de importância, tendemos a ficar com reflexões faladas que não se materializam ou com pequenos truques de cinema que não se tornam de fato uma discussão, ou uma investigação a partir da forma.

A inegável capacidade de consumar singularmente os conflitos na imagem que Muro (2008) e Sem Coração (2014) atestavam de maneira muito evidente, parece diluída nesta estreia em longa, talvez não pela diferença óbvia de duração, mas justamente pela natureza dos objetivos. Animal Político parece se dedicar à busca de sentido, de significado, especificamente. A presença no bicho não atesta um investimento justamente no que há de menos discursivo, mas no que há de mais. O padecimento do personagem é que a experiência cotidiana não lhe dá um a mais, um além, lhe falta justamente o significado. Esse investimento em um campo mais ligado ao logos acarreta numa menor força encantatória, inflando sua dimensão cerebral – tornando o filme predominantemente racional em suas ações.

O episódio da “pequena caucasiana” é um exemplo de tentativa de irrupção de uma força aparentemente mais desordenada, menos condicionada pela persistente busca do protagonista. A mudança de suporte, entrada ainda mais intensa numa atmosfera vintage, expõe um tipo de relação que ronda todo o filme em graus variados de intensidade. Sua jornada em torno do sentido (sense) é marcada por episódios nonsense (como a própria escalação da protagonista) que parecem indicar que essa busca por sentido é vã, isto é: o filme não acredita de fato no que supostamente o personagem busca.

O uso da ironia sempre implica em dobrar em risco o jogo dos sentidos – ou afirmar que não há sentido possível. Pois se não se está dizendo explicitamente o que se quer dizer, esse não dizer precisa dizer ou mostrar alguma outra coisa. A jornada de Animal Político, seu desencantamento, fuga e reencantamento, por ser bastante reconhecível como trajeto padrão deste tipo de jornada “em busca de si”, parece carecer justamente deste algo mais, como filme. Essa ironia dramática causada pela separação filme-personagem (ele não parece saber que é uma vaca, mas nós vemos isso) acarreta que o valor da jornada se dá para o personagem mas não para o filme como forma. O estabelecimento desse ethos onde as coisas mais significam do que são parece limitar esta busca de encontrar realmente algo.

A distância criada pela presença do animal em relação às ações e objetos banais ao redor não é atualizada por outra relação de deslocamento. Estranhamente, ao contrário do personagem, o filme parece se encontrar bastante rápido, se conformar consigo, e ali permanecer, até o fim – a irrupção da caucasiana fica como espécie de negativo, como alguém que quer fazer relação mas não consegue, por outros motivos, que também está isolada, mas que também acaba por funcionar como um valor de atração em si e menos de desdobramento. O livro ABNT, um livro de normas e medidas, um livro de referência, indica esta arbitrariedade da experiência humana em relação ao mundo concreto, mas esse olhar não se desdobra em outros níveis. A criação da sociedade, a vida subjetiva humana, é de fato uma útil fabulação. Mas como esse processo pode se dar hoje? A vizinhança de um niilismo cool – cuja marca é o texto que ouvimos, em relação a um conjunto de objetos e signos que vemos – tende a proteger esse Homero bovino de encontros reais. Tal atmosfera de signos, uma vez pressuposta sua equivalência, acaba por reiterar somente seu próprio vazio como experiência e não somente como significação. Nos tornamos todos vacas, ao incorporar uma passividade perante as imagens. Para lidar com o banal é necessário adicionar-lhe camadas, modificar a perspectiva inicial.

De certa maneira, ao contrário do que narra de seu personagem, o filme soa como se tivesse dificuldade de sair de uma certa zona de conforto. Uma vez estabelecido seu tom e suas operações, ele parece seguir sem muitos sobressaltos até o fim da viagem. A interessante premissa inicial parece tornar-se com o tempo um peso que o filme carrega sem destino certo, esticando-a e repetindo-a para além de sua própria duração como experiência, como algo que ainda pode oferecer resposta, ou qualquer diferença de forma ou idéia. Político é justamente o fato desse animal que somos ter a capacidade de fazer distinções, inventar diferenças, e suscitar esse processo ao seu redor, mantendo o tônus no processo, e não na expectativa de seu fim através de uma resposta. Essa espécie de apego do filme a si mesmo como forma parece indicar uma desistência de encontrar, que acaba por limitar suas ilhas de inventividade, suas investidas na superfície. Se o que diferencia o animal homem é esta faculdade de dobrar a linguagem e construir essa infinita cadeia de sentidos, é surpreendente que justamente aí, no manejo da própria linguagem para além dela mesma, o filme permaneça impassível.

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