Alemão, de José Eduardo Belmonte (Brasil, 2014)

março 25, 2014 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Juliano Gomes

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Se nada mais der certo
por Juliano Gomes

Alemão é o nome do lugar onde o filme se passa, mas também uma palava que quer dizer estrangeiro, aquele que não é do lugar, e, mais do que isso, aquele que não é bem vindo, um inimigo. Um alemão é alguém em quem não se pode confiar. Num filme que narra um grupo de policiais infiltrados em campo, é bastante claro que o que veremos é a exploração de situações que nasçam dessa condição de não ser bem-vindo, de ter que se esconder, de precisar ser outro para sair com vida de um território que lhe é hostil. Mas, além disso, parece haver ainda uma terceira camada de sentido ao redor da palavra do título: o filme parece ser absolutamente “alemão” aos registros que evoca em sua construção. A opção por uma espécie de hibridismo frágil e “bem intencionado”, se não faz o tiro sair pela culatra, parece produzir somente vácuo em um território de disputa simbólica central no Brasil contemporâneo, o que pavimenta a construção de uma encenação incipiente tanto como construção ficcional quanto como análise sócio-política.

A opção de misturar um drama camerístico de agentes infiltrados (figura clássica do gênero para catalisar o drama do falso/verdadeiro) com a discussão localizada da ação da polícia no Rio de Janeiro, a implantação da UPP e os grandes eventos, parece resultar numa espécie de passividade, de impotência (que é também dos protagonistas) generalizada. Tanto campo quanto extracampo parecem reféns de uma estratégia que não lhes permitiu construir relevo real. A tipificação dos personagens necessita de investimento de construção para que produza algo que não esteja dado de largada. Pois a ideia de um falso filme de ação, dessa antecâmara da grande ação (que é a invasão do Morro do Alemão pela polícia em 2007), é justamente um campo aberto para a exploração dos elementos contidos no microcosmo da Pizzaria do Doca (Otávio Müller). Mas o filme carece de força na construção espacial da cena e de densidade dramatúrgica dos personagens para levar isso realmente a cabo.

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Ao contrário de Quando Eu Era Vivo (2014), filme de Marco Dutra também produzido pela RT, a estratégia do confinamento espacial não transforma, aqui, o espaço em algo vivo, que se oferece em elementos como construção de tensão ou empatia. A aparente confusão causada pelos planos próximos, jump cuts ou fusões dentro do mesmo plano, parece refletir esse estado brando de indefinição que resulta em passividade morna da mise en scène. A proximidade da câmera exprime mais uma experiência de limitação do que de produção de sensações pelo corpo e pelas matérias (como em Miami Vice (2004), de Michael Mann, por exemplo). Há um desinvestimento nas durações que parece não permitir a instalação nem de uma sensação material pela presença, nem de uma sensação do drama causada pela tensão ou atmosfera. No anúncio do confronto final, por exemplo, o filme nos mostra uma espécie de videoclipe que frustra tanto a expectativa pela exploração dos corpos em combate como catarse, quanto a possibilidade de anti-duelo que não se consumaria. O combate, afinal, vem – um pouco tarde (o filme todo parece exalar essa sensação de um maneirismo tímido, de quem chega tarde, mas afinal perde o bonde), mas chega desinvestido da força de exploração dos corpos, das situações espaciais que marcam os códigos do gênero policial e que necessitam de descarga frontal, de força e exploração das massas na tela.

Uma pequena cena é bastante elucidativa: o traficante playboy, vivido por Cauã Reymond, começa a dançar, sozinho, obviamente com a arma na mão. O filme se abre para uma digressão, em slow motion, de um momento absolutamente desfuncional para o andamento da trama. Entretanto, a cena – que, mesmo em câmera lenta, dura alguns poucos segundos – parece atestar um desinteresse em momentos de curtição, de deleite pelo movimento puro, de tiração de onda – uma espécie de má consciência de dar relevo a esse tipo de material diante da gravidade do tema, ou mesmo um desinteresse em algo que fuja da linha mestra da trama, que tanto aprisiona as possibilidades de exploração do filme. O jogo de correspondências e tipificações, de cada um com seu laço e sua falta dele, parece exigir do filme um esforço muito grande em fazê-las constar na tela burocraticamente (como no flashback entre os personagens de Caio Blat e Antônio Fagundes), em esforço vão para justificar a existência dos tipos. A lógica causa-efeito das motivações particulares de cada personagem (e também da ligação com a painel socio-político contemporâneo) deixa pouco espaço para o que não tem sentido maior – espaço sagrado do filme de ação, pois ação é, afinal, o que se basta em si, a força abstrata a partir do concreto (os corpos) que só existe como autocombustão. Aqui, a “ostentação” parece uma ameaça.

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A evocação reiterativa do tema de Ennio Moricone para Era uma Vez no Oeste (1968), nos momentos em que se almeja densidade dramática, só faz por revelar justamente sua falta. A matriz maior desse “chegar depois”, no território simbólico supremo do cinema da primeira metade do século XX (o western americano), se construiu justamente a partir de uma profundidade ética e moral (um mundo de valores invertidos) que se torna estética. O filme de Sergio Leone era exemplo máximo de um cinema de ação que chega às últimas consequências do abstrato, alcançando um território onde ninguém mais se move, pois os personagens se tornam espaço. Já que tudo está morto, é preciso filmar os mortos, então. É justamente essa transição entre uma leitura ética e uma estética, essa força de inversão (aqui, um filme de ação em espaço fechado) e desdobramento na cena que parece faltar. A resposta, por exemplo, em Cães de Aluguel (1992), de Quentin Tarantino, de estrutura bastante similar, era uma grande força de urdimento, em que cada diálogo, pequeno movimento ou objeto se tornava um elemento de força no jogo interno, catalisando assim o próprio extracampo.

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O exterior do centro de Alemão – a favela – como imagem, já é, em si, uma espécie de gênero que transcende o cinema. Talvez se possa dizer que se trata do objeto de maior disputa simbólica do país (classe C; rolezinho; cultura de periferia, etc). Em Alemão, esse repertório, ao passo que parece não importar muito (o drama é de internas), repete justamente as estratégias já absolutamente consolidadas pelas referências do repertório favela movie (velhos palavrões; velhas caracterizações; a divisão entre gente-humilde-trabalhadora-de-bem e traficantes) e da própria imprensa. Não por acaso, as imagens de arquivo do jornalismo aderem ao filme sem nem força de choque, nem de unidade absoluta. A linha final, pós-resolução do conflito, leva justamente para imagens do familiar – crianças e o pai – e depois desemboca nas imagens das manifestações recentes contra a ação da polícia. A força anacrônica desta montagem, dada a construção desse drama que parece querer “humanizar” esse grupo de protagonistas, parece mais um mea culpa um pouco oportunista (trata-se, sem dúvidas, de um filme atual), pois, ao final da projeção, tudo mantém o seu lugar. Os policiais são corruptos, têm ligação com o tráfico, que têm ligação com o estado, que só se importa com os mega eventos (curiosamente, não se fala dos Jogos Pan Americanos, que aconteceriam um mês depois da invasão e que provavelmente têm ligação bastante direta com essa operação policial), assim como a favela é um lugar precário, onde nem todo mundo é bandido… mas, em 2014, constatar isso parece de fato tarde demais.

Diante dessas narrativas de primeira importância política, infelizmente, não há margem para gestos fracos, vacilantes. Se a questão é propor uma experiência que guarda suas singularidades (variação “autoral” de filme de ação, com relativo baixo orçamento, equipe jovem e grande lançamento), suas fragilidades o impedem de avançar em qualquer terreno aqui evocado. A alienação – no sentido de um déficit mesmo de referência (seja estética, espacial, ou ética), de planos de conjunto – somente reforça a retórica que oprime e mata: esta que diagnostica tudo no mesmo lugar, seja em relação ao cinema ou ao seu extracampo. O entretenimento é o vilão, mas também o herói desse jogo, porém é preciso fazê-lo aparecer, como forma (investimento interno, força abstrata, digressiva) ou como informação. Não se pode, por exemplo, naturalizar uma das maiores ações de marketing estatal-midiático da atualidade – que é transformação da palavra “pacificação” em substantivo comum (objetivo mór de toda ação publicitária) – como na contextualizão inicial do filme. É aí que a passividade se torna conivência. É guerra, neguim, mas uma outra, ainda à espera de uma imagem justa.

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