Acéphale, de Patrick Deval (França, 1969)

dezembro 1, 2013 em Em Vista, Luiz Soares Júnior

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Arqueologia da batalha
por Luiz Soares Júnior

“(…) a existência de um modo mental que a similitude das alucinações e das sensações nos forçava a considerar diferente do pensamento, do qual o pensamento não podia ser, mesmo em suas modalidades sensíveis, senão um caso particular”.

Louis Aragon

“O homem é, na verdade, o único animal que deixa registros atrás de si, pois é o único animal cujos produtos ‘chamam à mente’ uma idéia que se distingue da existência material destes. Outros animais empregam signos e idéiam estruturas, mas usam signos sem ‘perceber a relação da significação’ e idéiam estruturas sem perceber a relação de construção”.

Erwin Panofsky, Significado nas artes visuais

Um grande travelling circular sobre um rosto – um rosto? Em off, a máquina de barbear elétrica, que escava este conglomerado de cimos, reentrâncias, relevos, volumes. Um palimpsesto, um bunker de carne para o tiritante Nada? “E se o corpo não fosse a alma, o que seria a alma?” (Whitman). O corpo no Acéphale, de Patrick Deval, será sempre este Outro, que a câmera, coalescente (os travellings anfíbios, à flor da epiderme) ou entomológica (a frontalidade chapada dos planos de conjunto) vai se encarregar de inquirir. Como nasce um corpo no cinema? E quais os devires que lhe pertencem, os rastros característicos, os eidos que este destila? Toda uma história do corpo e suas aventuras sofrerá no filme uma dessacralização – ou consagração a ritos anteriores, soterrados sob a encarnação da Persona cristã, ritos pagãos?

O curta Heráclito o Obscuro (1967), do mesmo Patrick Deval, já nos dava a chave: o filósofo-profeta, Heráclito o obscuro, está destinado a ser aquele que vai inaugurar meios novos de interrogar o sentido do Ser – agora dialetizado, repartido e reconstituído a partir da Diferença: Mesmo e Outro, Identidade e Diferença. “O mundo é como as brigas dos amantes: a reconciliação se segue à disputa e tudo o que foi separado se une novamente”. Mas como? Pela experimentação de outras formas de mimetismo, divagações fenomenológicas que encontram na carne do homem o seu lugar de jogo. Um credo místico de dissolução da subjetividade nas agruras e delícias do mundo se manifesta aqui pela integração ao filme de dois pontos de vista impossíveis: Heráclito primeiro nos “aparece” sob a perspectiva do fora de quadro, pois só a equipe de filmagem pode corresponder à visão daquele homem que nos dá as costas em primeiro plano, abaulado bloco de granito; corte, e um plano geral e sequência, agora regido pelo Divino, no qual o filósofo deambula pela ilha natal, perdendo-se nos istmos do tempo e nas anfractuosidades da paisagem. O homem é o lugar onde tudo se encontra e repercute, jamais uma Origem nem um Fim. A epígrafe de Hölderlin para o curta ilustra exemplarmente a necessidade da adoção de uma perspectiva (sim, ponto de vista: aquilo sem o qual o cinema não passa de grife televisiva, exercício de narcisismo pornográfico) outra, uma carne e um devir inacabados ou deformados, para se vislumbrar o mundo: “O infinito, como espírito dos estados e do mundo, só pode ser captado a partir de um ponto de vista desajeitado (maladroit)”. Ao final do filme, Heráclito, errante e sacrílego como o canibal de Pasolini, aposta numa última estratégia de des-figuração: coberto de lama e ao sol, nos defronta em um novo traveling circular, retórica privilegiada desta anamorfose de que é objeto o corpo do homem: é preciso inspecioná-lo detidamente com o esquadro da câmera para reencontrar, sob as irradiações e destroços do mundo, o close identitário, agora seu calcanhar de Aquiles.

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Acéphale vai consistir na experimentação de várias destas retóricas de desconstrução da identidade, estas refigurações da presença sob o impacto da câmera onívora e do mundo esquivo e hostil. Com seu beat monocórdico, sua iconicidade, seu low profile de maconha, é a xerox messiânica e arqueológica de Maio de 1968: a política é antes de tudo este gesto de desvelamento, que consiste em usar a câmera para desvendar micro (os poros no rosto do primeiro plano) e macro regiões (a cidade de Paris) de ser: o cinema como micro-física e macro-política de um corpo situado. Se o cinema ousa instituir uma Política, esta só pode efetivar-se na arena de uma presença expiada por esta Alteridade eletromagnética que o olho da câmera institui. Nunca a intimidade esteve tão à mercê do Duplo que a viola e intimida; para Daney, a grande diferença entre o cinema experimental americano e o europeu consistia em que o primeiro se concentrava em processos primários de percepção e o segundo necessitava das mediações estabelecidas pelo texto do crítico, já que desde sempre trabalhava (e era trabalhado) por um texto prévio, uma experiência cultural anterior. Acéphale reconstrói esta oposição: se o close em Eisenstein será instrumento privilegiado para a anexação à sintaxe da decupagem de uma dimensão semântica, em Deval o plano de conjunto nos revelará (no sentido fotográfico de revelateur) os efeitos que um texto recitado imprime sobre os corpos dos atores, em sonambúlica espreita.

Uma das operações de perversão mimética mais impressionantes do filme, aliás, se dá na segunda seqüência: um plano de conjunto que nos mostra uma mulher, um homem deitado (recitando, a partir do quinto minuto, um texto com conotação, timbre e ritmo místico-monistas), um patinho que se equilibra sobre seu ventre e, à direita do campo, o que a princípio parece ser um torso branco, envolto em plástico, reluzente, maciço. À medida em que o texto vai desenrolando o seu rosário de evocações do Uno, o torso se vira para nós e começa lentamente a desvencilhar-se de sua carapaça de plástico luzidio; é o próprio Deval, agora frontal e fatal, em uma impertinência de dândi, voltado para nós.  O texto surte o efeito de uma animação do objeto, uma atualização da inspiração profética sugerida pela recitação na matéria inerte. No filme-palimpsesto de Deval, a camada originária da mística profética vai infiltrando-se, lenta e hipnoticamente, em vertical ascensão, até atingir o dorso efemérico do presente: o mantra zumbi da afasia hippie, as deambulações e imersões propiciadas pela droga, as anamorfoses do corpo humano masturbadas à exaustão pelo Aktionismus de Viena. Está tudo lá: mas 1968 nos aparece na distância de uma nuvem de haxixe pela interpolação destes textos e destas poses inteiriçadas – na distância sub species aeterniates de uma figuração pré-histórica (a sagração do fogo e da lua, o congraçamento com os elementos, no que parece ser um hapenning ensimesmado de heroína e nostalgia no Bois de Boulogne).

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Como no cinema do Pasolini tardio, como nas Passagens benjaminianas de Paris, capital do século XX, assistimos a uma operação arqueológica de natureza genealógica: trata-se de desvelar sob o Novo o império do Mesmo, como bem nos ensinaram os frankfurtianos – de ver, sob o bulício e a histeria aparentes, o efeito de uma ação da inércia; sob o histórico, o mítico, o imemorial; sob a Revolução de 1968, a cicatriz de 1871 (Comuna de Paris), talvez. É uma estratégia correlata no filme a esta dialética da natureza indiferente e da História, sua serva, em temor e tremor: a contemplatio mística adquire as garras da Reação. “Sob esta luz, todos os meus atos são justos, mas indiferentes. Sob esta luz, permaneço paralisado em contemplação. Ninguém é alguém. Eu sou Deus, sou Eros, sou um demônio, sou o Mundo. Uma tediosa maneira de dizer que não existo”.

Como em todo gesto dândi, espreita sob a mesura o dente da ruína. A performance aqui tira sua aura de fascínio e sedução de uma estranha cumplicidade com a morte – ou com o sonho, sua face de Jano. A importância do texto, tanto em Heráclito o Obscuro quanto em Acéphale, não anula esta consangüinidade, sugerida pelo filme, entre o sonho e a estratificação ritualística do real pela pose e pela recitação monótona; pelo contrário. O texto aqui é o leitmotif da inervação lisérgica. Freud identificou nos processos primários do inconsciente a existência de uma estrutura de montagem dos acontecimentos da vida real; o inconsciente, máquina teratológica de condensação e deslocamento dos eventos sofridos pelo homem, aspira à confecção de um continuum de imagens, uma colcha de retalhos de significantes luminosos e vibrantes, onde o real se cristaliza, sem necessariamente vir a significar nada. A palavra inexiste no sonho, porque mesmo a palavra adquire o status de uma coisa; o que conta para o sonhador é o impacto da palavra-coisa, bólibo de tempo, volume e textura, sobre o seu corpo transitivo; é a conjugação de seu Desejo pela imagem-mater.

O plano seqüência, que em Rossellini serve como um meio ativamente expressionista (Tag Gallagher) para atingir o fito de “acompanhar um personagem em todas as suas impressões e descobertas”, aqui nos introduz na misteriosa operação que consiste em implodir, por obra de um encantamento progressivo da duração e do gesto, um espaço funcional: a belíssima seqüência no túnel do metrô, que se encerra com um traveling dianteiro, expectante e espectral, ao fim do qual os melancólicos cultores da Lascaux pós-moderna acabam por ser encurralados contra uma estrutura metálica, guardiã da Cidade. Ao final, estaremos sempre lá, sob o Princípio: ao rosto do menino nu, sobrepõe-se uma máscara ritual.

Se o primeiro Garrel (A Cicatriz Interior, de 1972; A Concentração, de 1968; O Leito da Virgem, de 1969) também retoma ritos e analogias dos primórdios, é com o fito de dar à sua “copa e cozinha” uma ressonância cosmogônica. Deval parece seguir o caminho oposto e equidistante: aqui, o nosso mundo aparece-nos arruinado, alter, como o Eu – “ergo non sum”. E só resta aos neo-dândis a reconquista reinventante de uma Origem, cravada no seio da cratera da Cidade. A batalha foi perdida, talvez de antemão: um filme é o inventário órfão, o óbulo rapsódico de sua História.

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