A visita do Divino: o cinema de Víctor Erice

março 1, 2015 em Em Vista, Luiz Soares Júnior

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O Espirito da Colméia, Victor Erice

por Luiz Soares Júnior

“On croit que les enfants ne savent rien (…) Et ce sont les enfants qui savent Tout/
Car ils savent l’innocence première
Qui est tout”.

Charles Péguy, Le mystère des saints innocents

“É preciso nos darmos conta de que a experiência imediata do tempo não consiste na experiência tão fugaz, tão difícil, tão sábia, da duração, mas antes na vivência despreocupada do instante, capturado sempre como imóvel”.

Gaston Bachelard, A intuição do instante

“Uma hora não é apenas uma hora. É um vaso cheio de perfumes, de sons, de projetos e de climas”.

Marcel Proust, O tempo reencontrado

O cinema de Víctor Erice compraz-se na precipitação de prestidigitações tamisadas pelo tempo e pela luz. A princípio, pode-se pensar que a sua grande arte consiste numa percepção intensiva destinada às durações –  não apenas aos corpos humanos escarpados pela temporalidade mundana, mas aos corpos naturais submetidos à temporalidade cíclica (O Sol de Marmelo, de 1992); só que aqui todo o espectro do ser é chamado à ribalta, e não apenas os atuais (as epifanias, os conciliábulos com a paisagem freqüentes em seus filmes). Pois o tempo também se encarrega de burilar cristais figurativos virtuais, nos containers do imaginário: a aparição de Frankenstein em O Espírito da Colméia (1973), a percepção extática propiciada pela projeção de cinema em La Mort Rouge (2006); ou os fondus acelerados de O Sol do Marmelo, através dos quais o processo de maturação dos frutos adquire uma pátina alucinógena: a deliquescência de textura propiciada pelo fade in leva o espectador a identificar muito mais facilmente o marmeleiro à Idéia que o pintor Antonio Lopez carrega na cabeça que aos ciclos de transição ontogenética. Mas trata-se sempre de um affaire de temps, invólucro de milagre e vaticínio mágico: plano sequência ou fondu crepuscular, plano fixo oracular ou hipnótico (o relógio do pai de Estrella em O Sul, de 1983); é preciso sempre dar-se um tempo de espreita e de expectativa (a menina Anna e o monstro no lago, presentificação “Noite e neblina” da cena do filme de Whale), é preciso receber o “dom” do instante, adaptar-se e conformar-se ao papel que a “contemplatio mundi” propicia ao personagem, para que enfim a percepção seja presenteada com outros status quo, agora supra-fenomenológicos: a presciência, a taumaturgia, a vidência. Os personagens de Erice devem antes de tudo voltar-se para o mundo e contemplá-lo, longa e ardorosamente: a criança diante da janela em Espírito da Colméia, aureolada pelo estio crepuscular, pode representar um paradigma aqui de transitiva abertura ao que se manifesta, de coalescência ao que se dá (à luz, ao ponto de vista, ao espaço enfim amplificante e agregador).

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O Esprito da Colméia, Victor Erice

Esta onipresença do tempo às dimensões e flexões dos entes transforma cada sequência em uma cerimônia de iniciação do mundo. O instante, primeiro e último, é necessariamente revelador, pois ameaçado de desaparecimento. Como a poesia de Rilke, o cinema de Erice é assombrado pela evanescência possível de tudo; o instante seguinte já não nos pode encontrar: a tapera abandonada de onde o soldado republicano foi arrastado em O Espírito da Colméia; os planos finais de O Sol do Marmelo, de onde desaparecem o pintor e sua máquina de figuração do imponderável, dando lugar à empresa de uma outra técnica de captura “amplificada” do ser, com a câmera e os holofotes; a mensagem engarrafada e jogada no mar, em Sea-Mail (2007), dirigida a um impossível Abbas Kiarostami, encastelado no fora de campo da memória feérica dos contos de fadas; ou esta fatal explosão que arrebata os veraneantes niilistas no episódio de Los Desafios (1969). A ausência é o grande plano de fundo destas aparições precárias, e elas tornarão a se abrigar definitivamente sob o envoltório do fora de campo: imaginário, memória.

Se o tempo é, em um mesmo ímpeto, um índex de plenitude da experiência e de decrepitude, o seu cinema consistirá essencialmente em um “jogo” pendular e ressoante entre estes domínios intermediários, os intervalos gratos a serem aproveitados antes que o crepúsculo volte a cair: a criança crescerá, os pais morrerão, o filme vai acabar (La Mort Rouge), os frutos apodrecerão (O Sol do Marmelo), os instantes privilegiados da vida conjurada serão inevitavelmente tragados, e finalmente embalsamados sob o Abracadabra do Era uma vez… É justamente por isto que os filmes de Erice se cristalizam nestas colchas de retalhos luminosos, nas quais o plano fulge mais do que a sequência e a sequência se destaca, gloriosa e faustosamente (a comunhão de Estrella em El Sur) contra o fundo grisâtre dos dias que se precipitam para o Nada. O episódico e o fragmentário designam precisamente este intervalo precioso entre a Plenitude e a Ruína: a pátina que os recobre nasce de uma confrontação dialética entre estes in-extremis tão arquetipicamente relacionados.

Em um concentrado aurático de espaço-tempo, sintetizam-se os dados esparsos e descontínuos da vida, equilibra-se e ordena-se o fluxo que oscila entre o acaso e a Necessidade, “justificam-se” as intempéries da trajetória, sublimam-se as anfractuosidades da existência. Se Erice privilegia a parte ao todo, é porque reconhece no instante uma cápsula fenomenológica de irisação taumatúrgica do Real: o que fica de um passeio à praia senão a quintessência, residualmente incrustada nas flexões dos gestos e nos detalhes dos objetos, de uma diversidade fenomênica impossível de ser totalmente apreendida pelo Eu? À afasia diante do inacessível Todo, privilegia-se o balbucio tatibitati, maravilhado e circunspecto, perante o detalhe icônico. Se o Divino para Hölderlin reside em uma impressão íntegra ou reconciliada da realidade (reivindicada pelo pintor Antonio López, ao lembrar da lição do professor de liceu: “É preciso alcançar uma certa integridade”), na qual a presença  expletiva da imagem e sua significação ainda não foram separadas e opostas pela consciência mediadora, então os seus filmes consistem em  “séries” de ofertas ou visitas do Divino: embora muda e opaca (Isabel fazendo-se de morta em O Espírito da Colméia, a observação sazonal do metamorfismo dos frutos em O Sol do Marmelo), vacilante e débil, a imagem é o termômetro ou sismógrafo mais extraordinariamente significativo de uma atmosfera ou estado de espírito: coágulo da sensação em uma escritura fina, trêmula e faiscante, urdida de tempo e de luz (meta-física em certo sentido, pois composta de matérias translúcidas, diafanamente imateriais). Se, cotejada com a palavra, revela-se menos vantajosa para o alcance de fins cognitivos, compensa este déficit com uma porosidade tutelar aos coups de foudre da aura; sobretudo a imagem cinematográfica, que vive e morre diante de nós (e renasce tantas vezes, ao sermos revistos por um filme!).

Assim, as sequências de Erice são estes óbices inestimáveis lançados à percepção pelo tempo: um desafio, uma inspiração, mas igualmente a sagração de um luto antecipado – o luto pelo presente perfeito, perseguido e infiltrado pelos modos fantasmas do Verbo criador.  Quando, ao fundo e ao fim de um plano fixo com profundidade de campo, a menina Estrella “retorna” como a adolescente Estrella, o pacto de conversão está firmado e consagrado: esta passagem, intersticial mas decisiva, entre um ente mesmo e Outro dá-se de forma transparente; a distância respeitosa da câmera, o velamento propiciado pela profundidade de campo: o esforço técnico consiste justamente em desbastar o campo de qualquer intervenção “deus ex machina” do diretor, manifestá-lo em sua limpidez e diafaneidade, relegando unicamente à demiurgia do tempo o trabalho de metamorfose. O luto: em um mesmo e frontal movimento, a emergência de um novo ser é contígua e implicada pelo eclipse de outro.

O Sol de Marmelo. Victor Erice

O Sol de Marmelo (1992), Victor Erice

Quando, em O Espírito da Colméia, a mãe de Anna dorme e a câmera se debruça sobre seus pômulos, temos direito a um dos planos mais devastadoramente quietistas da história do cinema: um plano fixo de cerca de dois minutos, no qual o rosto se torna o revelateur dos vincos que a duração inscreve sobre o planalto dos corpos – seus rastros. O comovente do plano é a possibilidade se intuir, no rosto suavemente percutido pelas virações da alma, que se trata, a um só tempo e pincelada, de um retrato mortuário da mãe irrecuperável e do estudo aquarelado de uma banhista enfim liberta da labuta do divertissement.  O mesmo acontece nos marcos de giz sobre a derme das frutas em O Sol do Marmelo, progressivamente retesados, emaciados e finalmente decompostos pela ação de Cronos; são marcos metafísicos da investidura do visível pelo invisível, demarcada cirurgicamente em fases pontuais: primeiro, a protuberância insolente, a alacridade temporã, paulatinamente emasculadas pela intersecção dos minutos implacáveis (recordemo-nos também deste retrato fictício do pintor em seu leito de morte, pintado pela esposa ao final do filme). Indenidade e caduquice, dinamismo da metamorfose e decrepitude do eixo, primeira e última vez inextricavelmente implicadas. É impossível não lembrar aqui do insight de Raymond Durgnat, que radicaliza o “Era uma vez” melancólico da aparição da aura em Benjamin, insistindo sobre a conjugação particularmente vampiresca entre “uma percepção e uma reminiscência”, na medida em que esta fórmula registra com brilho impertinente a natureza diferida da presença, o seu estilhaçamento constelacional em um passado inacessível e um futuro inalcançável: Nec plus ultra!

Se um plano de cinema é necessariamente assombrado pelo fantasma da passagem do tempo (inter planos), e se a película não passa de um  ersatz “projetivo” (material e psicológico) do mundo encarnado, nem por isto os filmes de Erice deixam de encarecer, com uma força incomum, as texturas absolutamente físicas de tudo – das fímbrias do gesto às intermitências vacantes da duração. Lembramo-nos de Fernando, o pai da menina Ana, em O Espírito da Colméia, ou desta máscara alienígena lavrada de negro contra o fundo chamejante e intumescido do amarelo da colméia? Como em todo grande cinema, em Erice os significantes não são meros suportes para significados exógenos e transcendentais, mas coágulos polpudos e iridescentes de luz que o mundo impregna eroticamente. Contrapondo-se às autópsias entomológicas empreendidas por Buñuel e Lang, a práxis vidente de Víctor Erice se exercita em uma entomologia da carícia, na qual o fondu é a mediação indispensável à ausculta dos veios secretos que se agitam sob as superfícies presentemente apaziguadas. Se os embates camerísticos entre o espaço, a luz e um corpo em gestação (ou transmutação), permeável às flutuações elegíacas do devir, são os leitmotiv mais caros à sua obra, é porque este cadinho de condições permite-lhe exaltar as potências mediúnicas do cinema, este engenho da analogia triunfante, onde tudo o que é vem a ver e ser visto.

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