A Spell to Ward Off the Darkness, de Ben Rivers e Ben Russell (França/Alemanha/Estônia, 2013)

maio 30, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

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A geometria da transcendência
por Fábio Andrade

A Spell to Ward Off the Darkness começa com um longo e irregular movimento panorâmico, no limite em que o céu encontra a superfície da água de um lago (e o reflexo do mesmo céu), e em que as fronteiras entre dia e noite, claridade e escuridão), se diluem. A câmera insiste em seu movimento lateral, mais perscrutador do que descritivo, como se buscasse algo de extremamente específico nas áreas cinzentas daquela indefinição. Antes que a epifania seja encontrada, uma música invade a banda sonora, com pequenas frases sonoras que se repetem e se acumulam, em uma espécie de loop que deixa algum espaço para variações. Subitamente, a composição entrecortada e insistente se dilui em sons contínuos, circulares, flutuantes, como se forçasse uma comunhão com a natureza – o mesmo princípio do “om” budista, e da música de um La Monte Young, por exemplo – que aquela mesma câmera não pareceu encontrar na imagem.

Do círculo sonoro, o filme corta para outra figura geométrica, que representa fisicamente sua estrutura: um triângulo branco sobre fundo negro, que antecipa cada um dos três atos que compõem o filme após este prólogo. No primeiro, o foco se detém sobre uma espécie de comunidade neo-hippie, em que um conjunto de pessoas – em geral, com alguma inclinação artística – convive em uma propriedade com algumas construções rústicas e grandes áreas verdes. Alguns desses artistas trabalham na construção de uma espécie de dome de madeira em um pequeno descampado entre as árvores, promovendo uma intervenção ao mesmo tempo bruta (pelo material) e sofisticada (pela forma) na natureza, que, apesar da escala mais modesta, não estaria fora de lugar entre as instalações de um Inhotim. Essa espécie de redoma conduz as opções formais que marcam este primeiro ato: seja nos planos de nuca que acompanham diferentes personagens em caminhadas, nas estampas das roupas, ou mesmo na conversa sobre a “corrente de dedos no cú” que ganha posição central nesta primeira parte, este primeiro ato tece uma série de linhas que se voltam sempre para dentro, na ironia de uma comunidade naturista que não parece se relacionar com o “fora”, e que busca, naquela teia de relações, construir um casulo ao redor de si mesma. Em sua estrutura tríptica, A Spell to Ward Off the Darkness desenha um triângulo deixando claro e cristalino que sua primeira face é voltada para dentro.

O isolamento e o afastamento da vida urbana em busca de uma nova possibilidade de comunidade (ou de comunhão) têm sido temas recorrentes ao cinema contemporâneo, em especial àquele vindo de velhas potências que hoje convivem com uma severa crise interna. Se há, de fato, uma malaise de projeto (político, social, utópico) que aponta para a necessidade de buscar novas vias, e que hoje se manifesta igualmente no cinema, nas artes visuais, na literatura e na música, é inevitável perceber como ela contrapõe um projeto desenvolvimentista de consumo tardio de um país como o Brasil, se firmando como o caminho inevitável de falência geral que nos aguarda, feito um destino ou mau agouro. A arte passa a ser contaminada por um desejo de transcendência espiritual – quiçá religioso – em uma terra sem deus, que passa invariavelmente ou pelo misticismo ou pelo primitivismo, pensando a História como uma trajetória circular que prevê seu inevitável esvaziamento quando o prefixo “pós” não encontrar mais radicais cujo sentido ainda possa ser modificado. Em uma das muitas caminhadas que erigem o casulo da primeira parte de A Spell to Ward Off the Darkness, Robert A.A. Lowe (músico conhecido como Lichens, que se apresentou recentemente pelo Brasil e que faz parte da trilha-sonora do filme) – um dos habitantes daquela comunidade – entra no dome construído por seus amigos, no meio do bosque, e ali se encerra este primeiro ato. A experiência de transcendência da obra de arte se literaliza no corte da primeira para a segunda parte: literalizando a experiência do museu, o filme encontra solidão no coletivo, e passa, então, a acompanhar o personagem em sua jornada individual.

Se A Spell to Ward Off the Darkness é um triângulo cuja primeira face é voltada para dentro, é justamente a obra de arte que inverte essa polaridade, inaugurando uma nova face, desta vez com sua parede voltada para fora. Pois, no filme, a obra de arte é o portal sensível que permite a comunhão com o “fora” através da radicalização do contato com o “dentro”, mudando radicalmente o registro do filme: em seu segundo ato, A Spell to Ward Off the Darkness se torna uma jornada solitária no coração da natureza, tirando Robert A.A. Lowe daquele casulo deliberadamente construído (representado de maneira literal pelo dome parcialmente fechado, no meio da mata) e colocando-o em contato com um mundo mais amplo, mais vasto, menos controlado. Neste segundo ato, o filme se aproxima de Two Years at Sea (2011), longa anterior de Ben Rivers em que ele acompanha a rotina de Jake Williams, uma espécie de hermitão que passou dois anos trabalhando no mar para juntar recursos para então viver em total isolamento. Mas se Two Years at Sea encontrava na jornada de Jake Williams uma potente analogia para a própria criação artística, é nesta segunda parte que os problemas do filme de Ben Rivers e Ben Russell começam a se cristalizar na superfície: as imagens e sons aqui parecem reféns de uma idéia, de um projeto estrutural mais amplo que, mais do que nortear a construção do filme, se impõe como razão última de sua existência.

Esse terreno, por si, não é nada novo, nem problemático em sua essência. Artistas tão diferentes como Steve Reich, James Benning e Sol Lewitt perceberam com enorme inteligência o potencial catalisador do cálculo e da matemática (ou, como é o caso aqui, mais especificamente da geometria) como bálsamo de uma experiência artística de potencial transformador intelectual e emocional. A Spell to Ward Off the Darkness se coloca com enorme consciência nesse território em seus primeiríssimos movimentos, confrontando a circularidade difusa de seu primeiro plano (visual e sonoro) com a marcação dura (mesmo que de traço irregular) da aparição do primeiro triângulo sobre tela negra. O problema é quando a ordem dos fatores é invertida: troca-se o “mostrar” pelo “demonstrar”, em um movimento muito próprio à arte conceitual, mas que termina transformando a arte em um catalisador matemático, e não a matemática em um catalisador artístico. Aos poucos, A Spell to Ward Off the Darkness começa a se tornar uma experiência tão cristalina em seu discurso intelectual que se torna excessivamente regular, previsível, óbvia.

Essa previsibilidade é temporariamente quebrada com o princípio do terceiro ato, que transforma o triângulo em uma equação dialética: tese + antítese = síntese. Se a primeira face volta-se para dentro, e a segunda para fora, a terceira é justamente a da comunhão, em um mesmo espaço, do dentro com o fora. Surpreende, aqui, o caminho dessa síntese: da comunidade neo-hippie à imersão na natureza, A Spell to Ward Off the Darkness termina em um show de black metal com participação do próprio Robert A. A. Lowe, em que os rostos pintados com tinta branca e a brutalidade sonora aparecem como resultado natural de uma relação telúrica encontrada no ato anterior, reefetivando a experiência do museu (a solidão compartilhada) na performance da banda. Essa surpresa, porém, dura apenas o tempo de sua fixação, e o terceiro ato termina (de uma maneira tão previsível que se anuncia logo no primeiro plano do filme, inclusive) como mais uma longa demonstração de sua própria síntese de raciocínio, minando seu efeito artístico na insistência em uma performance que não se ressignifica ao longo do tempo. A Spell to Ward Off the Darkness é como uma proposição artística que não se efetiva como obra de arte, como uma reflexão sobre a transcendência que a todo tempo é sabotada pela inevitabilidade de sua imanência, como um projeto utópico que, inadvertidamente, sabota qualquer possibilidade de utopia.

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