A natureza do sobrenatural no cinema de Kiyoshi Kurosawa
julho 17, 2013 em Em Pauta, Fábio Andrade
A inversão da atração
por Fábio Andrade
O princípio de Sessão Espírita (Kôrei ou Séance, como é mais conhecido o telefilme feito por Kiyoshi Kurosawa, lançado em 2000) é uma verdadeira súmula das principais questões e dos mais recorrentes procedimentos do cinema de Kiyoshi Kurosawa. Em plano de conjunto rigorosamente composto em 1:1.37, dois homens conversam em um gabinete sobre uma tese de Psicologia. Um dos homens – mais velho, aparentemente um professor ou instrutor – parece igualmente interessado e desconcertado pelo cruzamento entre psicanálise, metafísica e tecnologia proposto pelo trabalho do outro – mais jovem, mais informal, mais curioso. Em dado momento fala-se até do Psico-fone de Edison, não à toa, um dos principais nomes do cinema das origens, que em dado momento acreditou ter inventado um – outro – dispositivo para se conectar com os mortos. A conversa se dá em plano único, com duas correções de quadro que, embora nada leves ou discretas e extremamente denotativas do jogo de forças ali, apenas recompõem a partir da movimentação dos atores.
Daí, a montagem faz um corte seco para um plano geral aparentemente desconectado daquela primeira ação, de uma espécie de auditório (ou igreja) extremamente amplo, filmado em leve plongée. Ao fundo, uma mulher – o único ser visível a habitar aquele amplo espaço – está completamente estática, de pé, de costas para a câmera. Sem qualquer motivação aparente, a câmera faz um travelling para a direita, violento mas também fluido, flutuante, em sua movimentação pelo espaço.
Do primeiro plano, retira-se um importante tripé que dá fundação para diversos filmes de Kiyoshi Kurosawa: psicanálise, metafísica e tecnologia. A conversa do primeiro plano se dá claramente em uma Instituição, e os personagens – em especial o mais jovem, o protagonista – se vê movido pela sede de conhecimento. Esse conhecimento, porém, não é institucionalizável – para se compreender o mundo, é preciso estar igualmente aberto à psicanálise (a ciência), à metafísica (o mistério) e à tecnologia (a concretude material do meio). Mas há o corte abrupto para este outro espaço que, àquele momento, ainda não apresenta conexão qualquer com o plano anterior. Neste espaço, manifestam-se dois dos procedimentos mais recorrentes de Kurosawa. O primeiro é evidenciado por essa mulher estática, no fundo do quadro. Todo o cinema de Kiyoshi Kurosawa é povoado por personagens que tendem a esses instantes de congelamento, de aparente catatonia, de suspensão da mobilidade original do cinema, que é cristalizada na imobilidade de uma pose “fotográfica” (recurso que M. Night Shyamalan se apropria para traduzir visualmente a inoculação da maldição em seu Fim dos Tempos). E o segundo é a própria movimentação da câmera. O travelling lateral deste segundo plano de Sessão Espírita não é um reenquadramento, não articula qualquer ambição descritiva do espaço (à exceção das luzes apagadas no lado direito, o auditório é absolutamente simétrico, como em geral são os espaços dos filmes do diretor), nem sublinha ou acentua coisa alguma. Se montarmos a primeira cena com a segunda, como o diretor montou, uma importante porta se abre para o cinema de Kiyoshi Kurosawa: o travelling é a própria manifestação do sobrenatural.
Nas sequências seguintes, essa impressão será literalizada de diversas maneiras, inclusive com uma mancha negra (recurso comum no cinema de Kurosawa) em um contraplano que marca a presença deste sobrenatural naquele espaço. O tal auditório é um espaço contíguo ao gabinete acadêmico, e a mulher que esperava o jovem pesquisador é uma médium que se comunica com os mortos (e havia um espírito ali, ela diz, mas já não está mais – em plano de ponto de vista quase idêntico ao travelling lateral que dava corpo àquele espírito, mas agora com todas as luzes acessas e sem o movimento de câmera, pois “já não está mais”).
Mas se a metafísica é vizinha da ciência, é muito porque, para o cinema de Kurosawa, todas essas ferramentas de busca de conhecimento (a psicanálise, o misticismo, a tecnologia) são representações de um mesmo handicap, de uma mesma inabilidade do homem em compreender e se relacionar com o mundo concreto, com “as coisas como elas são”. Os males – os serial killers; as donas de casa em desarranjo; os espíritos desgarrados; o pai de família que é demitido de seu emprego; os policiais vingativos – em Kurosawa, ganham manifestações frequentemente sobrenaturais, mas são todos de raiz extremamente concreta. A vida natural é infiltrada por essas manifestações que fogem ao conhecimento antropocêntrico do mundo – o inexplicável, o maravilhoso, o terrível – e que têm no cinema sua maior ferramenta de representação.
Há, com efeito, uma importante chave nesse duplo procedimento – a mulher congelada e a câmera vivente – que perverte a ordem natural do funcionamento do mundo. O cinema é uma ferramenta científica inventada para registrar os movimentos naturais dos animais, dos homens e dos efeitos na natureza (o famoso vento nas folhas das árvores que encantou Méliès nas primeiras vistas de Lumière – e, reafirmo, não é à toa que o nome de Edison é evocado no começo de Sessão Espírita), e esse caráter é ressaltado com frequência no cinema de Kurosawa. Em Loft (Rofuto, 2005) e Cura (Cure, 1997), velhas pontas de película guardam os frangalhos dos registros de experiências científicas do passado; em O Caminho da Serpente (Hebi no michi, 1998), os snuff movies interditos em VHS salvam as últimas imagens do assassinato (o último momento ainda de vida) da filha de Miyashita (Teruyuki Kagawa), o homem que encarcera e tortura os possíveis mandantes do assassinato; em Pulse (Kairo, 2001), são os monitores de computador que guardam uma janela para o mundo dos mortos.
Há, portanto, uma recorrência na reafirmação da natureza do cinema, mas ela já reaparece aqui pervertida, manca (como a vilã-mór de O Caminho da Serpente), infiltrada por esse sobrenatural, esse arranjo das mesmas coisas em uma outra, inversa ordem. Como bom cineasta moderno, Kurosawa afirma essa perversão ao mesmo tempo que a usa como ferramenta de restauração deste pacto primeiro, deste primeiro maravilhamento: quando a mulher-fantasma desgruda da parede em Pulse (antes de qualquer coisa: um dos melhores e mais assustadores filmes de horror já feitos), e caminha com os joelhos quebrados em direção à câmera, não há espectador vacinado que resista à desconfiança de que ela possa de fato sair da tela para vir nos buscar. Mas para que esta crença seja íntegra, é necessário que Kurosawa reconheça uma outra ordem de funcionamento. É necessário inverter as polaridades, para que elas voltem a se atrair. A principal manifestação desta outra ordem está toda no segundo plano de Sessão Espírita: um ser humano filmado em estado estático – feito coisa – e uma câmera que se move de maneira autônoma – feito gente. Toda a filmografia de Kurosawa é pontuada por esses dois recursos, que, em geral, marcam o exato momento da infiltração da vida então ordenada por essa inversão, essa ordem inversa. Esses movimentos de câmera de Kurosawa são como o veneno tomando conta do ambiente, o gás que encontra uma pequena brecha na janela e por ali se infiltra, sem possibilidade de sair pela fresta por onde entrou.
Se as personagens de Kiyoshi Kurosawa tendem à imobilidade, tendem à desumanização, as coisas inanimadas frequentemente funcionam de maneira oposta ao seu uso ontológico, seja por vontade própria ou por ação do “mal” – por ordem das personagens que já foram “contaminadas”, cuja mais acabada tradução é o hipnotizador, em Cura. É possível perceber essa ação, essa mudança de estatuto, nos próprios objetos de cena: a lâmpada que aumenta de intensidade sozinha, até estourar, em Loft (fotos abaixo); os televisores que ligam por conta própria em O Caminho da Serpente; o vídeo sem som da bateria de escola de samba na arquibancada do estádio em Barren Illusion (Ôinaru gen’ei, de 1999); os computadores que funcionam desplugados em Pulse; a máquina de lavar girando sem roupa dentro, em Cura; o teclado que não produz som, em Sonata de Tóquio, culminando no domínio sobrenatural de “Claire de Lune” em um dos planos finais mais deslumbrantes do cinema recente.
Essa leve inversão parece ganhar representação mais ostensiva em um leitmotiv que também pontua todo o cinema de Kurosawa: os planos dentro de veículos, sejam eles carros, ônibus ou trens. Há uma provável ponte entre esses veículos em estúdio e a ojeriza de Alfred Hitchcock a filmar planos aproximados em exteriores reais, cortando sem pudor do barco no meio de um lago para o primeiro plano de um rosto perfeitamente iluminando com paisagem em back projection. As sequências de transportes em Kurosawa em geral também ganham tratamento parecido, mas o diretor intensifica essa limitação de maneira a gerar outro deslocamento, outra inversão: é justamente quando as personagens deveriam estar em trânsito que elas estão mais claramente imóveis. Isso se dá, de maneira mais branda, no branco leitoso que cobre os vidros do carro em Caminho da Serpente, e é intensificado no ônibus voador de Cura e Pulse, em que tudo que se pode ver pelas janelas é um céu, como se o ônibus estivesse voando, sem qualquer compromisso com a realidade concreta da situação.
Mas há, também, uma outra camada de contaminação, mais sutil, que está neste travelling gratuito do segundo plano de Sessão Espírita: a impressão de autonomia do próprio aparato cinematográfico. A filmografia de Kurosawa é um verdadeiro jogo de forças entre o controle rigoroso e essa abertura para o imponderável, simbolizada em grande parte por esses movimentos insólitos – uma câmera que flutua ao redor de uma mesa de jantar em Cura; os travellings laterais completamente “fora dos trilhos” de Os Olhos da Aranha (Kumo no hitomi, 1998); o movimento frontal inexplicável em um “inocente” corredor em Loft, até encontrar a protagonista vomitando, em um canto do quadro – mas por vezes se transformando em jogos formais mais duros e profundos que determinam toda a armação de um filme. Há o exemplo mais claro do uso de duas câmeras em Loft, melhor detalhado por Rafael C. Parrode em seu texto, mas também na convivência calculada dos dois filmes que brigam internamente em Doppelganger (Dopperugengâ, 2003) – um filme sobre o duplo precisa ser, também, um filme duplo, parece afirmar Kurosawa, com a passagem brusca de um meio thriller para uma metade de screwball comedy – e na sistematização do absurdo nos espaços e ações desconectadas de Barren Illusion, espécie de cópia em negativo de Toda Uma Noite (Toute une Nuit, 1982), lindo filme de Chantal Akerman (e há, inclusive, espaço para uma versão pocket de Jeanne Dielman na rotina da esposa fora do eixo em Cura).
Kiyoshi Kurosawa é um diretor essencial dentro do cinema contemporâneo por tão bem concatenar o impasse do ser humano atravessado pelas forças que proporcionam essa inversão. Em Água Viva (Akarui mirai ou Bright Future, 2003) e Charisma (Karisuma, 1999), isso se dá na infiltração simbólica da própria natureza (no primeiro filme, a água viva; no segundo, uma árvore) em um cotidiano desprovido de qualquer metafísica ou misticismo; em Barren Illusion e Sonata de Tóquio, a paralisação se expressa na geometria cuidadosamente ordenada da arquitetura da cidade (e o rigor do filme em mostrá-la) com o absurdo dos eventos que ali acontecem; em Loft, Pulse ou Cura, um gatilho parece ativar toda a sobrenaturalidade que jazia, dormente, sob as capas do cotidiano. Em todo o cinema de Kiyoshi Kurosawa – dos pinku aos filmes existencialistas; dos tiroteios entre gangsters à perdição policial; dos fantasmas e múmias à realidade hiper-concreta do Japão contemporâneo – sobrevive esta impressão de que, para que as coisas voltem a se apresentar como elas são, é preciso vê-las invertidas, como no cinema. Como resume o filósofo existencialista contemporâneo encarnado no hipnotizador (no diabo, em suma) de Cura, “tudo que estava dentro de mim está fora, e por isso eu consigo ver o que está dentro de você”. O cinema de Kiyoshi Kurosawa é constatação de que Deus pode nos chamar pelo nome, mas nós só atendemos se ele nos chamar por um nome que não é o nosso.
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