A Gente, de Aly Muritiba (Brasil, 2013)

outubro 18, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

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Por dentro e por fora do quadro
por Filipe Furtado

A Gente é o primeiro longa-metragem solo de Aly Muritiba (antes ele foi um dos diretores do coletivo Circular), mas é também a terceira parte da série de filmes do realizador sobre o cotidiano das prisões brasileiras, após os curtas A Fabrica (2011) e Pátio (2013). É importante ter a ideia da trilogia do cárcere em mente ao pensar A Gente, já que o filme todo se constrói sobre o quadro de cinema e o que é permitido entrar ou não nele. A primeira opção de Muritiba é justamente colocar no fora de campo o que privilegiara nos dois filmes anteriores – os presos e suas famílias, que raramente aparecem no filme e geralmente são somente como uma voz fora do quadro – e privilegiar a figura do agente penitenciário e as muitas dores de cabeça de se administrar um presídio. Os filmes anteriores da trilogia se tornam, portanto, o contracampo do filme que Muritiba busca realizar agora, e A Gente em momentos específicos busca conexões ao usar opções de encenação que trazem à memória os dois curtas. É uma operação das mais curiosas justamente porque o foco, os agentes, é precisamente o material humano que a maior parte de obras que versam sobre o espaço do presidio tende a ignorar.

O olhar de A Gente remete com frequência aos documentários sobre instituições de Frederick Wiseman, mas há uma diferença notável que separa o filme de Muritiba do mestre americano que é o de aproximação com o objeto: o cineasta é ele próprio um ex-agente penitenciário e passou sete anos trabalhando na mesma penitenciária do filme. Por mais que sua câmera procure dar um passo para trás e olhar com distancia maior este universo, o filme jamais escapa de revelar uma intimidade com o espaço e os dramas que ali se desenrolam, assim como consegue estabelecer uma cumplicidade com as suas personagens que outros documentários de observação não alcançam.

De certa forma, A Gente sugere a outra imagem complementar àquela de O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003); como no filme de Paulo Sacramento, impressiona justamente a proximidade que ele alcança de seus personagens e o consequente livre acesso que o cineasta tem a um material ao qual somente a especulação da ficção normalmente pode dar corpo. Se O Prisioneiro da Grade de Ferro fazia este movimento para trás das grades, A Gente busca o mesmo nos corredores e salas administrativas. O efeito não tem propriamente o mesmo frescor, mas Muritiba encontra algumas imagens e situações singulares e seu olhar sobre elas tem na maior parte do tempo o mérito de evitar o discurso fácil que costuma ser atraído para um tema como o seu.

O filme é muito hábil justamente em estabelecer uma relação com o fora do quadro, sobretudo com as duas presenças institucionais constantes, mas invisíveis, que juntas administram o presídio: as facções criminosas e o governo do estado. Boa parte das sequências de A Gente lida com personagens precisando resolver questões que vêm de fora e com a maneira como elas afetam o cotidiano do presidio. Toda a construção do filme segue esta lógica de dentro e fora, com um fora de quadro que reforça o caráter claustrofóbico do presidio. Muritiba é inteligente o suficiente para reconhecer a diferença de poder entre presos e agentes e não simplesmente torná-los equivalentes, e tem uma facilidade muito grande em encenar seus corredores como um espaço asfixiante e reforçar a ideia de um fora de campo sempre pronto a fazer uma pressão sobre o que vemos. Não deixa de ser curiosa a opção de sair ocasionalmente do presidio para acompanhar o protagonista Jefferson Walkiu na sua segunda ocupação como pastor, em sequências não muito bem resolvidas, mas que servem como um escape para a opressão e tensão constantes que o filme constrói lá dentro.

A Gente termina por se revelar mais um dos vários filmes brasileiros políticos recentes que se constrói sobre a lógica de uma panela de pressão, que o cineasta administra com cuidado. O filme se estrutura entre dois discursos: o primeiro, esperançoso, quando Walkiu assume o comando do grupo promovido de dentro; e o segundo, amargurado, quando ele anuncia o seu afastamento e avisa que seu lugar será assumido por uma pessoa de fora, mais apta a realizar a política carcerária que o estado definiu. Entre estes dois discursos, temos as desventuras práticas de Walkiu em tentar servir de intermediário de uma situação fora de controle.

Com isso, A Gente se soma a uma tendência recorrente nos filmes brasileiros recentes de observar uma questão e envolvê-la sob a chave do fracasso – tendência que não deixa de ser curiosa no seu contraste com o discurso desenvolvimentista e otimista do governo federal. Aqui, o arco dramático do filme todo aponta para a inevitabilidade deste fracasso, e o protagonista a entregar o seu cargo é uma inevitabilidade do jogo entre dentro e fora que o Muritiba costura. O filme engasga um tanto nos momentos em que busca partir do especifico que descreve para um alegórico mais amplo (uma ideia já presente no trocadilho do título), mas é sempre muito mais forte quando permanece concreto e direto.

Se A Fábrica e Pátio alcançaram destaque justamente por abraçarem opções de encenação que davam vazão para o encarceramento das suas personagens, parte da força de A Gente nasce exatamente de como o filme encontra formas de transformar o documentário de observação num espaço que privilegia uma mise en scène elaborada, com muitos momentos de grande vigor que dissolvem a questão de se o que vemos é encenado ou não. Num primeiro momento, a aproximação proposta por Muritiba pode sugerir um filme que está disposto somente a dialogar com modelos bastante conhecidos de documentário, mas o filme aos poucos põe em primeiro plano seu gosto por um pôr em cena muito mais próximo do ficcional, com um trabalho apurado de construção de espaço que reforça a ideia de cárcere. A Gente termina se mostrando o verdadeiro contracampo de Pátio: o cárcere aqui remete sempre ao quadro cinematográfico.

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