A Filha de Ninguém (Nugu-ui ttal-do anin Haewon), de Hong Sang-soo (Coreia do Sul, 2013); Our Sunhi (U ri Sunhi), de Hong Sang-soo (Coreia do Sul, 2013)

outubro 18, 2013 em Coberturas dos festivais, Do Arquivo, Em Campo, Em Cartaz, Filipe Furtado

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A Filha de Ninguém (2013), Hong Sang-soo

Das muitas possibilidades do filme-retrato
por Filipe Furtado

Para muitos cinéfilos, o que primeiro vem a mente diante dos filmes de Hong Sang-soo são as similaridades entre eles e a ideia corrente de que o mestre coreano está sempre a realizar o mesmo filme. A familiaridade é um elemento-chave para o cinema de Hong, na medida em que serve de ponto de partida para seus interesses: começa-se sempre de um mesmo conjunto de imagens e comportamentos para dali chegar aos seus objetivos com o filme da vez. Mas me parece importante, no meio deste, discurso notar que existe muito de distinto a cada nova obra, que a questão nos filmes de Hong Sang-soo não é a semelhança, mas a diferença; um pouco como em Hawks, o conhecido nos convida para um novo passeio próprio em meio àquela sensibilidade. Pensemos, por exemplo, em como a questão de língua e tradução adicionava um elemento a mais que redimensionava a ação em A Visitante Francesa (2012). No Festival do Rio deste ano, tivemos oportunidade de notar isso diante de seus dois novos filmes, A Filha de Ninguém e Our Sunhi, cujas várias similaridades iniciais levam a destinos estéticos e emocionais bem diferentes.

Primeiro, as semelhanças: tanto A Filha de Ninguém como Our Sunhi fazem parte do recente movimento de Hong de dar preferencia para suas personagens femininas – o que por si só traz a vantagem de suas mulheres costumarem ser personagens mais distintas que seus homens -; são ambos filmes retratos que, não por acidente, trazem o nome da protagonista no título (A Filha de Ninguém originalmente se chama Haewon, Filha de Ninguém), e no processo abrem mão dos jogos narrativos que por vezes dominam seus filmes. O último ponto me parece bastante relevador, já que, na altura de A Visitante Francesa era possível questionar se o prazer em brincar com o ato de contar histórias que por vezes domina seus filmes começava a se tornar um detrimento a eles, uma camisa de força para a construção dos mesmos. Não que Hong abandone suas obsessões; a segunda metade de A Filha de Ninguém funciona habilmente como um duplo sonhado da primeira, com vários personagens e situações sendo revisitados por pontos de vista diferentes, mas o efeito obtido surge com bem mais naturalidade do que em A Visitante Francesa ou Oki’s Movie (2010).

Ambos os filmes, e em especial A Filha de Ninguém, sugerem um desejo da parte de Hong Sang-soo de se reaproximar da pegada dos seus primeiros longas, menos interessados em jogar com a familiaridade e mais destrutivos e impiedosos na sua perspectiva. O que os distancia bastante um do outro é uma questão de tom: Our Sunhi é um filme que calca seus arrombos de crueldade sobre um tom cômico benigno e que parece apostar em como um amálgama de perspectivas sobre a mesma situação podem somar para um retrato muito maior (o filme poderia muito se chamar Múltiplas formas de se filmar uma conversa de bar). Já A Filha de Ninguém é um dos filmes mais impiedosos do cineasta (certamente o mais desde Like You Know It All, de 2008), expondo o tom autocentrado dos seus personagens de forma ainda mais dura que o habitual, com a ideia de abandono prometida pelo título exacerbada com uma força surpreendente.

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A Filha de Ninguém entrega seu foco já em seu título: um filme sobre o abandono, desolado como poucos na carreira do seu realizador. Depois de uma vinheta cômica em que Haewon sonha encontrar Jane Birkin e dela receber a aprovação materna que tanto deseja, o filme começa de fato com Haewon reencontrando a mãe após cinco anos. É uma longa sequência muito particular na carreira de Hong, cujos filmes nunca foram dados a se focar sobre relações familiares. No lugar da familiaridade tão frequente entre seus amantes, Hong filma dois corpos que se desconhecem e se ignoram. Há algo de muito áspero nestas cenas, com a certeza de que há uma grande distância mantida não mencionada pelo tom de educação entre as duas (o filme jamais nos dará as informações que permitam completar o quadro daquela relação, o que só reforça o que ela tem de incompleta). Todo o resto de A Filha de Ninguém é assombrado por este encontro inicial. A Haewon, sobra o papel da mais isolada dos protagonistas de Hong, incapaz de estabelecer vínculo forte com qualquer um dos seus parceiros de cena.

Mais do que o habitual nos filmes do diretor, a crueldade e o sentimento destrutivo dominam as relações. Haewon reencontra o professor casado, seu ex-amante, e os momentos entre os dois carregam a impressão de que ambos trazem à mesa somente dores de cabeça ao outro. Hong Sang-soo raras vezes se dispôs a filmar de forma direta o ressentimento como aqui – a grande sequência no bar é notável neste sentido – e o fato de que ele nunca perde seu humor e graça no processo só o confirma como grande cineasta que é. A Filha de Ninguém é um filme marcado pela desconfiança: se o cinema de Hong Sang-soo é dominado por uma série de duetos e triangulações, aqui tudo se encaminha para isolar os personagens consigo mesmos. O aprendizado para Haewon é o de andar com as pernas próprias diante de uma existência cruel – não por nada, é o primeiro filme de Hong Sang-soo sobre pais e filhos.

Por duas vezes o filme retomara a mesma velha fortaleza – como já dito, A Filha de Ninguém da vazão ao gosto do cineasta por duplos, a sua segunda metade relendo a primeira – como espaço para ruptura de relações, e Hong filma o local com sua serenidade habitual, mas com um enfoque que dá à velha construção o aspecto de testemunha do pequeno drama. Um pouco como em Oliveira, tudo é redimensionado como se o abandono de Haewon fosse apenas mais um capítulo da grande história que passou por ali. Mais do que em qualquer outro filme de Hong Sang-soo, A Filha de Ninguém sugere um sentimento pialatiano de indiferença do mundo. O que afinal são as pequenas misérias humanas ali encenadas diante da grandeza daquele local? O espetáculo das lágrimas de crocodilo de um homem com o orgulho ferido não podem atingir mais do que um leve efeito cômico num espaço como este.

O livro de Norberto Elias que Haewon adormece lendo termina por sugerir que não há nenhum significado na morte para além do fim de uma vida, e A Filha de Ninguém é um filme atormentado por tal ideia. É como um pequeno apocalipse pessoal, o fim do mundo no sentimento de desolação de uma garota que não tem a experiência para carregar com ela tamanho peso. Sua estrutura dual traz consigo um lento esvaziamento da primeira parte. Ao final, resta somente o sentimento de que, no fim, estamos todos sozinhos. Viver é morrer – como a mãe de Haewon lhe passa como um último conselho, o único possível de deixar para um ente querido. Não há no cinema de Hong Sang-soo até aqui sentimento igual.

Our Sunhi (2013), Hong Sang-soo

Our Sunhi (2013), Hong Sang-soo

Em Our Sunhi, retomamos a ciranda amorosa de Hong Sang-soo numa chave muito mais convidativa. Sunhi é a ex-aluna de cinema com três pretendentes (numa formação que sempre agrada muito a Hong), um professor e dois cineastas em pontos distantes de carreira. O filme sugere uma releitura de Oki’s Movie sem o motivo metalinguístico (certamente não é coincidência que Oki e Sunhi sejam interpretadas pela mesma atriz). De fato, parte do frescor de Our Sunhi brota justamente do seu tom direto: nenhum filme recente de Hong Sang-soo foi tão desprovido de molduras narrativas. Não há reviravoltas, filmes ou sonhos, somente uma série de encontros rigorosos, geralmente entre Sunhi e seus pretendentes.

Bebe-se ainda mais Soju em Our Sunhi do que já é habitual nos filmes de Hong. Praticamente todas as sequências dos primeiros dois terços do filme envolvem dois personagens sentados num bar ou café bebendo enquanto discutem sobre Sunhi. O foco quase exclusivo destas conversas somente é quebrado pelo senso de humor do cineasta, como na gloriosa sequência da entrega do frango. A graça e o prazer de Our Sunhi residem muito nas maneiras que Hong Sang-soo localiza frescor nesta série de encontros similares filmados com grande precisão e ainda menos cortes que o habitual, sem que o filme jamais resulte monótono, cada conversa afirmando-se com seu ritmo e identidade própria.

Como o enunciado do seu título já anuncia, Our Sunhi é um filme sobre o esforço de uma jovem de se afirmar em meio a uma série de olhares masculinos que procuram enquadrá-la nos seus desejos… um filme no qual o desejo se confunde justamente com uma afirmação da vontade de olhar. Na sua última parte, Hong abandona os espaços fechados da sua mesa de bar e parte para um parque que, assim como a velha fortaleza de A Filha de Ninguém, serve de testemunha da ruptura. É uma ruptura do filme com seu jogo estético e da personagem com a sua independência. Our Sunhi é um dos filmes mais engraçados da carreira de Hong Sang-soo, mas seu humor esconde uma considerável dose de melancolia e amargura; sua batalha dos sexos (ou de olhares) nunca pareceu tão irreconciliável.

A Filha de Ninguém e Our Sunhi representam não somente dois novos passos neste sempre fascinante mundo que é a obra de Hong Sang-soo, pronto para permitir nos perder na graça das suas pequenas crueldades e desejos, mas uma das afirmações mais claras de que, por toda sua familiaridade, trata-se de um mundo que permite um universo muito rico e variado de dramaturgias. A mesa de bar sempre termina por revelar ângulos de um frescor distinto.

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