A crítica como conceito, exigência e praxis

fevereiro 10, 2014 em Colaborações especiais, Em Campo

por Nicole Brenez

* Tradução por Luiz Soares Júnior de original em francês, publicado na revista La Furia Umana e gentilmente cedido por Nicole Brenez e Toni D’Angela.

O campo temático da crítica não se situa fora do mundo
mas consiste, pelo contrário, na transformação deste mundo.
(…)
O discurso enquanto movimento
é apenas um aspecto particular do devir geral da consciência:
o acompanhamento simbólico, assim como toda balizagem pela consciência
das etapas de sua ação sobre as coisas, não deve ser isolado;
nos melhores casos (linguagem sistematizada),
ele participa de uma extensão correlativa da experiência”.

Jean Cavaillès, Método axiomático e formalismo (1937).

Antes de ser uma atividade remunerada, a crítica consiste em uma noção rica em ideais e possuidora de uma história complexa. O fato de que hoje, no campo do cinema, não existam mais relações entre estas duas acepções (a crítica profissional por um lado, a crítica como conceito estruturador do pensamento da época das Luzes por outro) não apenas não os autoriza a dissociar-se, mas obriga mesmo a pensar as relações efetivas e as articulações dissociadas entre ambas as concepções.

Na França, toda Crítica digna deste nome pertence, de forma consciente ou não, a uma tradição que remonta a Diderot, Jean-Jacques Rousseau, inspiradores da Revolução Francesa; e conta em suas fileiras com alguns de seus mais importantes escritores, como Victor Hugo, Baudelaire, Arthur Rimbaud,. Félix Fénéon, Joachim Gasquet… A conceitualização da atividade crítica das Luzes coube, no entanto, à filosofia alemã.

I – Origens teóricas idealistas.

Nosso século é o verdadeiro século da crítica, a que tudo deve submeter-se” 1: se em Kant a Kritik é engendrada historicamente pela crítica filológica que durante as Luzes presidia o exame racional dos textos religiosos, o conceito toma claramente com ele sua significação transcendental de análise dos meios e dos limites do conhecimento, de teoria das condições a priori de toda experiência. É o criticismo kantiano: “máxima de uma desconfiança universal em relação a todas as proposições sintéticas (da metafísica), até que se tenha desvelado o fundamento universal de possibilidade das ditas proposições nas condições de nosso poder de conhecer” 2. Desde aí, a atividade crítica “consiste em remontar às fontes das afirmações e objeções e aos fundamentos sobre os quais repousam, método que permite-nos esperar atingir a certeza” 3.

No concernente ao campo particular da estética, Kant distingue portanto dois tipos de crítica: a crítica empírica, que se contenta em refletir sobre casos particulares e em aplicar a eles as regras da psicologia (ou seja: de relacioná-los às leis da sensação); a crítica transcendental, que não parte das obras mas do próprio julgamento, e observa o funcionamento das faculdades. A primeira se limita a ser uma arte, a outra acede ao status de ciência. “A crítica do gosto só é subjetiva em relação à representação pela qual um objeto nos é dado: com efeito, ela é a arte (Kunst) ou a ciência (Wissenschaft) de colocar sob regras a implicação recíproca do entendimento e da imaginação na representação dada (sem relação a uma sensação precedente ou a um conceito), portanto de regrar seu acordo ou desacordo, e de determiná-los em relação às suas condições. Quando esta só nos mostra isto por exemplos, é uma arte; consiste numa ciência quando deriva a possibilidade de um tal julgamento da natureza destas faculdades, enquanto faculdades do conhecimento em geral. É apenas nesta ciência que temos interesse aqui, enquanto crítica transcendental. (…) Como arte, a crítica busca apenas a aplicação das regras fisiológicas (ou seja: psicológicas), portanto empíricas, a partir das quais o gosto procede efetivamente (sem refletir sobre sua possibilidade) ao julgamento de seus objetos e critica a produção das belas-artes; como ciência, ela critica a faculdade de julgá-los” 4.

II. Exigências materialistas

Como subtrair os componentes idealistas do conceito de Kritik, e como ele pode tornar-se instrumental e operatório? Por que é preciso delimitar o exercício da arte ao campo do sensível? Nisto consiste a própria história da Crítica em seus componentes políticos: numerosos autores europeus vão interrogar os limites estabelecidos por Kant e ultrapassá-los.

Três autores principalmente serão aqui concernidos: Karl Marx, Walter Benjamin e Theodor Adorno. A mudança maior operada por eles consiste no status da razão. Ela não pertence mais, como em Kant ou os Românticos, ao exercício individual das faculdades, capaz de se voltar sobre si mesma e assim aceder a sua liberdade; e ela não representa mais o ponto de acabamento a que tende a construção do edifício teórico. A razão se torna uma construção coletiva, de qualquer maneira uma dobra especulativa. No quadro marxista, a crítica consiste em desprender as determinações e os limites daquilo que se faz passar pela razão em um tempo determinado, a fim de manifestar o seu caráter eventualmente doutrinário e estratégico. Marx explica-se numa carta a Ruge: “A razão sempre existiu, mas nem sempre sob uma forma razoável (raisonnable). A crítica pode portanto se exercer sobre qualquer forma da consciência teórica e prática e desenvolver, a partir das próprias formas da realidade existente, a verdadeira realidade como sua exigência e fim últimos” 5. Assim como August Schlegel podia recomendar de nos atermos ao título de um livro para procedermos à sua crítica, da mesma forma Marx pode explicar a Lassalle que, para criticar de maneira imanente as relações sociais instituídas pelo capitalismo, basta fazer “uma apresentação, e através da apresentação uma crítica desta” 6. As implicações em jogo no conceito de crítica de Marx são fundamentais: trata-se de refutar a ordem do mundo, portanto no seio deste criticar a própria organização do saber e do discurso. É preciso repensar também a relação entre a crítica e o que ela critica. Por um lado, no que concerne à sua natureza e seu papel, a atividade crítica não é mais um gênero literário; ela é uma energia, e deve se converter em prática. A teoria crítica se transforma, em Marx, em “força material” 7. Por outro, no concernente à sua exposição, a crítica discursiva só realiza seu conceito ao inscrevê-lo na própria forma de sua exposição. A exigência de inventividade analítica é a mesma que a ensejada pelos Românticos, mas com vistas a implicações políticas e práticas evidentemente distintas. Os teóricos da Escola de Frankfurt assumem e desdobram o que Marx tinha programado, ao mesmo tempo no campo social e no campo estético.

No plano social, a crítica se consagra a desvelar as aporias e as contradições operadas numa determinada sociedade, na medida em que esta produz um certo número de comportamentos e de conceitos prescritivos, a começar pelos de identidade, indivíduo, sujeito, de poder, de dever, de norma.

No plano filosófico, a crítica põe as outras teorias à prova de seus pressupostos metodológicos, como explica Jean-Marie Vincent: “Ao mostrar as contradições das teorias – ou seja, ao proceder a uma crítica imanente das articulações do pensamento e das conexões dele com a experiência levada em conta, ou deixada de lado -, [ os membros da Escola de Frankfurt] visavam a explicitar os mecanismos que levavam à redução da complexidade das relações cognitivas, ao fixá-las sobre momentos reais da atividade humana, mas distanciados pelos determinismos sociais abstratos de sua constelação de conjunto (…) A crítica teórica não é portanto produção de uma ordem ou arranjo da realidade, mas produção rigorosa da desordem subjacente à ordem da razão estabelecida, falsamente transparente a si mesma e falsamente senhora de si mesma” 8.

Sobre o plano estético, em razão das últimas reflexões de Adorno em sua Teoria estética, devemos introduzir uma distinção provisória entre “crítica imanente” e “análise imanente”. A análise imanente, codificação acadêmica das proposições românticas, só considera a obra em seu livre jogo formal, independentemente de todo pertencimento a um campo histórico. Ora, se com efeito “a estética pressupõe absolutamente a imersão em uma obra particular”, a “análise imanente se acompanha de uma auto-ilusão”, que consiste em considerar a obra como uma mônada, portanto em se interditar de ver nela a sua própria potência crítica. “Hoje, já nos damos conta de que a análise imanente, outrora uma arma da experiência artística contra a ausência de sentido artístico, é usada de forma mal orientada como slogan para manter a reflexão social distanciada da arte absolutizada (absolutisé)” 9. Em nenhum caso trata-se de construir uma análise sociológica determinista das obras, mas de captar em que sentido as formas de uma obra possuem potência crítica – seja subordinando-se totalmente àquilo que recusam (como em Baudelaire), recusando todo pertencimento a seu contexto arte pela arte), ao inscrever suas aspirações sob forma de cicatrizes e rompimentos… Esta compreensão da necessidade histórica da aparição de uma forma analisada por si mesma, na particularidade da invenção de sua relação com a exterioridade, consiste na tarefa da crítica imanente. Neste sentido, Adorno pode escrever que a crítica imanente é “a única que é dialética” 10. Adorno explica, por exemplo: “Uma obra de sucesso, do ponto de vista de uma crítica imanente, não é aquela que reconcilia as contradições objetivas em uma ilusória harmonia, mas aquela que exprime negativamente a idéia da harmonia ao dar forma às contradições, de maneira pura e intransigente, até as profundezas de sua estrutura” 11. É a diferença qualitativa entre uma “obra de mérito ético-social” e uma obra crítica, entre um tratamento temático e uma invenção formal. Em “Parataxe”, estudo polemista sobre a interpretações de Hölderlin por Heidegger, Adorno expõe a lógica e as direções da crítica imanente (então ainda chamada “análise imanente”) 12. A crítica imanente:

. se opõe ao método genético, que confunde “a enumeração das condições que possibilitaram o advento dos poemas, dos dados biográficos, dos modelos e das pretensas influências com o conhecimento da própria coisa”;

. não se liga à intencionalidade do autor, mas aos elementos objetivos que compõem a obra;

. visa a “ultrapassar o fechamento monadológico” da obra, buscando seu conteúdo de verdade;

. encontra este conteúdo de verdade, em um primeiro tempo, na “reunião de seus elementos, ou seja, na totalidade de seus momentos”;

. e portanto, em um segundo momento, na forma com que esta “configuração de momentos” ultrapassa e transforma seu “contexto imanente”.

A crítica imanente parte de uma contradição: “toda obra exige ser compreendida unicamente a partir de si mesma, e nenhuma o pode ser”. Por que? Porque a explicitação do funcionamento formal da obra conduz a mostrar como a obra “abala o sentido”. Para parafrasear esta noção em termos não-adornianos, podemos dizer que o trabalho da crítica imanente se consuma quando esta permite-nos descrever em que, como e porque uma obra reconfigura ou quebra as categorias especulativas de onde provém. Nossa formulação prosaica tenta esclarecer as proposições de Adorno: “nenhuma obra é inteiramente explicitada pela camada material que requer a etapa da compreensão do sentido, enquanto que as etapas ulteriores abalam o sentido. É a via da negação determinada do sentido que conduz então ao conteúdo de verdade”.

Quanto a Walter Benjamin, ele é não apenas o primeiro historiador e teórico da “crítica imanente” (O conceito de crítica estética no Romantismo alemão, sua dissertação de Doutorado, redigida em 1919 e apresentada em 1920), mas seu praticante e inventor mais assíduo e programático. Benjamin estendeu o campo de competência da análise até o domínio da própria experiência sensível: “Perceber é ler”, anota em 1917. Tendo decidido que só escreveria em forma de comentário (o que não foi exatamente o caso, é claro), Benjamin transforma cada exegese em forma nova de trabalho analítico, para construir novos instrumentos, novos conceitos, procedimentos específicos para as vias de acesso ao texto, além de designar novos campos de embate para cada objeto estudado. A obra de Benjamin é (entre outras) uma estética da crítica. Talvez seja a primeira vez em que a análise não se apresenta mais como uma técnica unificada, tendo como critérios de validade a verificação reconduzida dos mesmos instrumentos aplicados a objetos diferentes”. Ao contrário, em todos os seus aspectos (tecnicidade, quadro de referência, dimensões estéticas e políticas), a crítica em Benjamin se renova no contato de cada objeto de estudo. Atenta às descontinuidades especulativas produzidas pela obra de arte, a própria crítica consiste, como metodologia geral (e não unificada), na prática de uma descontinuidade metódica. Um dos resumos mais claros de semelhante posição se encontra em Zentralpark: “”O ‘julgamento’ sobre uma obra do passado – ou seja, a apologia, se esforça em encobrir, em mascarar os momentos revolucionários presentes no curso da História. Ele deseja vivamente instaurar uma continuidade. Só acorda importância aos elementos da obra que já desempenharam um papel na influência exercida por ela. Ele negligencia as inclinações e asperezas que permitem um comando àquele que deseja ir além da obra” 14.

Como Adorno, passando do idealismo alemão à dialética marxista, no final dos anos 1920 Benjamin foi obrigado a confrontar a tradição “imanentista” à crítica materialista. Como para Adorno, em nenhum caso se trataria de remeter a obra às suas determinações sociais, e portanto retornar a um determinismo mecanicista, tendência que ambos condenaram à vulgata marxista, que considerava a arte como uma simples superestrutura (foi o que Adorno rechaçará em Benjamin, em sua crítica da primeira versão do ensaio sobre Baudelaire 15). Como Adorno (mas com seus próprios modelos teológicos), Benjamin, se podemos dizer assim, injeta os procedimentos imanentes no seio do materialismo. Ele denomina isto de “estética dedutiva” 16. Em que consiste isto? Em entrelaçar os processos “imanentistas” e materialistas segundo seu projeto, que ele qualificava de “marxismo experimental” 17. Tentemos reconstituir os estratos, que consistem em:

. reconhecer o caráter não-autônomo da arte [postulado materialista];

(“A doutrina da sobrevivência das obras de arte é dominada pela idéia de que esta sobrevivência desmascara a ilusão da arte como domínio autônomo” 18).

. “penetrar na obra”, “se solidarizar com a verdade contida pela obra”, “encontrar relações ocultas na própria obra” [ fórmulas típicas da tradição imanente];

( “Uma análise que não encontra relações ocultas na própria obra e, em consequência, não ensina a ver a obra de forma mais íntima, contentando-se apenas em contemplá-la- esta forma de crítica passa ao longe de seu verdadeiro objeto. (…) De forma alguma pode ser reconhecida como tal uma crítica que não se solidariza de nenhuma maneira com a verdade que a obra contém, que se mantém no domínio exterior a esta. Mas este é infelizmente o caso de quase tudo o que se faz em matéria de crítica marxista”)

. explicitar a dimensão crítica interna à obra [crítica imanente];

(“Acrescentemos que a crítica é interna à obra”)

. mostrar como a obra ultrapassa o estágio da arte [ ultrapassagem crítica materialista da tradição idealista];

(“A arte é apenas um estágio transitório das grandes obras. Elas se tornaram outra coisa (no domínio inerente a seu devir) e vão se tornar outra coisa (no domínio da crítica)”).

. estabelecer como ideal a existência de uma “crítica mágica” [síntese do imanentismo crítico e do materialismo crítico, ou seja, uma crítica que acompanha a obra ao longo de seu desenvolvimento, o que para Benjamin equivale a uma história de dissolução];

(“A crítica mágica como forma em que a crítica se manifesta em seu mais alto nível. Neste mesmo nível, aquilo com que se defronta é o tratado científico (de história literária)”).

. preservar o segredo destilado pela obra [ultrapassagem crítico-imanentista da tradição materialista];

(A crítica da crítica literária materialista gira inteiramente em torno do fato de que lhe falta esta face mágica, que ela não julga, e cujo segredo ela desvela sempre (ou quase sempre)”).

. ultrapassar a estética [movimento tradicional de toda dialética];

(A crítica realizada transpassa o espaço da estética”)

. Enfim, sem que se possa certificar se Benjamin falava de si ao expor semelhante programa, ao menos pode-se afirmar que ele previu a necessidade de se repensar praticamente a função social do intelectual e de lhe designar uma tarefa: a da mudança de rumo [ultrapassagem prática final]

(“O desvio de função como tarefa específica do intelectual. Seu caminho rumo ao comunismo não é o mais próximo, e sim o mais distante. Desvio de função como tarefa do especialista. Destruição pelo interior. Bolchevismo cultural”).

Podemos ilustrar a energia analítica de que é testemunha a obra de Benjamin com a afirmação, feita por um de seus primeiros objetos de estudo, Friedrich Schlegel, que concluía assim sua própria análise da atividade crítica de Fichte em relação ao pensamento kantiano: “E aliás, a critica jamais será demais” 19.

De toda esta rica história sumariamente evocada, o que podemos reter no concernente ao trabalho crítico no campo do cinema?

II O trabalho crítico.

1: Refletir sobre os corpus

Neste tempo de mutação acelerada, em que o afloramento das imagens reclama uma série de iniciativas, ao mesmo tempo teóricas e práticas (recensear os filmes e os autores fora de circuito), a crítica industrial – aquela cujo nome usurpa à crítica – obedece de forma cada vez mais intensa a seu princípio de obediência: quanto mais caro custa um filme, mais se deve falar dele. Nestes tempos que correm, o lançamento de um blockbuster na França pode chegar a ocupar 80% das telas. Quando chegará a 100%? A situação vai se tornar mais clara, totalmente desesperada e menos filistéia. A crítica independente continua a se bater sobre vários terrenos ao mesmo tempo: fazer uma triagem em produtos industriais que às vezes – e este fato nos comove de reconhecimento – são bons; dar uma visibilidade aos filmes de autores do mundo inteiro; dar conta dos festivais – porque é aí que se vê no geral o conjunto da produção dita de “arte e de ensaio” que não é contemplada de forma alguma pela distribuição -; apreender o papel das mutações tecnológicas, financeiras e jurídicas. Como desde sempre, ela só se presta a assumir uma tarefa: buscar os filmes fora dos circuitos, onde eles são mais numerosos, interessantes e frágeis. Todo cinéfilo sonharia voltar ao passado para impedir Émile Reynaud de jogar seus filmes no Sena, para impedir a MGM de cortar 42 bobinas do Ouro e Maldição (Greed) de Stroheim, para defender a memória de Jean Vigo no momento do lançamento de L’Atalante ou para levar consigo os filmes de Giovanni Martedi antes que os tratores (bulldozers) destruíssem o ateliê onde estavam alojados. Poderíamos escrever livros inteiros sobre a destruição e edulcoração de filmes, sobre os filmes inacabados, não feitos; sobre os filmes jamais vistos, perdidos, esquecidos ou mutilados que revelaram ser com o tempo os testemunhos mais decisivos de sua época, como Afrique 50 (1950) de René Vautier, Black Liberation (1967) de Edouard Laurot ou Ali au pays des merveilles (1976) de Djouhra Abouda e Alain Bonnamy, para citar apenas alguns. A história do cinema é uma história de injustiça, fiel nisto à história geral da Humanidade.

2. Deixar-se deslocar pela obra.

Para Adorno, apenas a interpretação revela o conteúdo de verdade que a obra detém, mas que não saberia destilar por ela mesma. “O Verdadeiro do conhecimento discursivo não é velado, mas em compensação ele não o possui. A arte, também uma forma de conhecimento, possui o Verdadeiro, mas como algo que lhe é incomensurável” 20. Para formulá-lo de forma crua: a arte possui a verdade, mas não o sabe; a interpretação (ou seja: a filosofia) sabe a verdade da arte mas não a possui 21. Semelhante dualismo, que repousa legitimamente sobre uma concepção restritiva do conhecimento como trabalho da pura racionalidade, assemelha-se muito a uma estratégia de infantilização da obra de arte – infância no sentido correto de infans – a obra não sabe falar, e este seria o papel do analista: falar em seu lugar.

Pode-se visar exatamente o contrário: que a obra diz sempre muito mais do que aquilo que ouvimos, em particular porque ainda não aprendemos a sua linguagem. Não seria mais rico pensar que o comentário não tem a necessidade de se prevalecer da mudez ou do balbucio da obra? Ele vai se legitimar ainda mais se traduzir corretamente algumas frases, para permanecermos nesta metáfora lingüística. Uma fórmula provocante de Jean-Luc Godard possui grande força programática: “Os filmes não foram vistos”. Ok, na imediaticidade de seu nascimento, os filmes radicais não possuem nenhuma superfície de visibilidade, fora o fato de provocarem deliberadamente o escândalo, como na grande tradição das avant-gardes (do tipo surrealista ou lettrista). Mas de forma mais geral, quaisquer que sejam os filmes, mesmo os mais gelidamente industriais, se vêem com freqüência reduzidos a seus esquemas roteirísticos, suas determinações materiais, suas condições de recepção. O que se perde aí constitui um dos lances mais dinâmicos da reflexão sobre os filmes: captar a potência de deslocamento, o potencial crítico das imagens.

3: Inventar formas de exposição (o estilo crítico).

Em análise, as escolhas dos descritores oferece tanto possibilidades dinâmicas quanto espaços de intervenção (modo de retenção, de découpage, de reprodução, de descrição e de reinscrição do filme no estudo). Seguindo as iniciativas do Romantismo alemão, Walter Benjamin podia assim inscrever em seu “Programa da crítica literária”: “Uma boa crítica possui dois elementos constitutivos: a glosa crítica e a citação. Pode-se fazer excelentes críticas contentando-se em glosar ou citar. É preciso a todo custo evitar a ‘indicação de conteúdo’. Em revanche, a crítica puramente por meio de citações ainda deve ser inteiramente elaborada” 22. Esta hoje se pratica no cotidiano e de forma massiva, através de montagens exegéticas que afloram, muitas das quais são visíveis na internet. Mas possuem elas virtudes críticas? E quais seriam?

Quais são as potências da imagem? Como o filme transforma a questão da arte? Este questionamento não pode mais ser formulado no sentido apologético entendido pelos ardentes criadores dos anos 1920, de Eisenstein a Jean Epstein, mas no sentido através do qual todo artista digno deste nome se retrai do domínio da esfera cultural, no seio da qual a arte, como atividade especializada, apenas representa o meio mais socialmente valorizado de aceder a mais-valias absolutas. Em um contexto de confiscação generalizada, onde a arte não passa do emblema privilegiado do fetichismo da mercadoria, como nomear as práticas e os gestos próprios à crítica estética?

O conjunto desta história e das questões que engendra presidiram à escolha dos textos aqui reunidos. Dentre os numerosos críticos de cinema que exerceram seu talento na França, privilegiamos não os mais famosos, mas àqueles cuja obra responde concretamente a uma das questões formuladas. Inventores de uma concepção de cinema (Miguel Almareyda restituído por Isabelle Marinone; Antonin Artaud analisado por Gabriela Trujillo; André Bazin revisitado por Louis-George Schwartz; os Situacionistas sintetizados por Cláudio Fausti; o Grupo Dziga Vertov atravessado por David Faroult; Jean-François Lyotard introduzido por Jean-Michel Durafour), pioneiros em sua atividade (os autores estudados por José Moure), ou de um método (Roland Barthes comentado por Raymonde Carasco)… eles atestam por seus escritos as potências críticas dos filmes, efetivas ou postuladas. Nesta história coletiva e heterogênea, a divisão entre artista e comentador não existe, os estetas mais acerados e profundos do cinema são com freqüência os próprios artistas. É claro que a esta história faltam vários personagens que não pudemos apresentar aqui. Louis Delluc, Jean Epstein, Colette, Henri Langlois, Omar Diop, Claude Ollier, André S. Labarthe, Marguerite Duras, Louis Seguin, Martine Rousset, Gérard Courant, F.J.Ossang, para mencionar alguns poucos, constituem igualmente autores essenciais. É por isso que dedicamos esta coletânea a uma outra ausente, aquela que foi a mais corajosa dentre as críticas de cinema, Michèle Firk (1937-1968), militante pela independência da Algéria, que abandona o terreno literário para combater com verdadeiras armas do lado das Forças revolucionárias da Guatemala – Michele, cujo percurso exemplar nos é restituído por Olivier Hadouchi e por aquela que teve a chance de ser sua amiga, Annie Tresgot.

Nicole Brenez.

Agradecimentos em particular a Olivier Hadouchi e Régis Hébraud.

1. Emmanuel Kant, Crítica da razão pura, prefácio da primeira edição, (1781) tradução de A. Tremesaygues et B. Pacaud, Paris, PUF, 1975, p. 6.

2. Emmanuel Kant, Sobre uma descoberta, citado por Rudolf Eisler, Kant Lexicon,  tr. Anne-Dominique Balmès et Pierre Osmo, Paris, Gallimard, 1994, p. 217..

3. Kant, Lógica (1880), Introduction, IV, ibid.

4. Kant, Crítica da faculdade de julgar (1790), tr. Alexis Philonenko, Paris, Vrin, 1979, §34, p. 121. 

5. Karl Marx, « Carta a Ruge », septembre 1843, in Obras filosóficas, Paris, Gallimard, Pléiade, 1982, p. 344. Sublinhado por Marx.

6. Karl Marx, « Carta a Lassalle », 22 fevereiro 1858, citado por Dick Howard, Marx. Nas origens do pensamento crítico, Paris, Michalon, 2001, p. 79.

7. Karl Marx, Para uma crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1844), in Obras filosóficas, op. cit., p. 390.

8. Jean-Marie Vincent, A teoria crítica da Escola de Frankfurt, Paris, Galilée, 1976, pp. 66-67.

9. Theodor W. Adorno, Teoria estética (1970), tr. Marc Jimenez et Éliane Kaufholz, Paris, Klincksieck, 1989, p. 231-32.

10. Theodor W. Adorno, « Engajamento» (1962), in Notas sobre a literatura (1943-1967), tr. Sybille Muller, Paris, Flammarion, 1984, p. 295.

11. Theodor W. Adorno, Prismas. Crítica da cultura e da sociedade (1955), tr. Geneviève et Rainer Rochlitz, Paris, Payot, 1986, p. 21.

12. Theodor W. Adorno, « Parataxe » (1963), in Notas sobre a literatura, op. cit., p. 310sq.

13. Walter Benjamin, Fragmentos (1916-1938), tr. Christophe Jouanlanne et Jean-François Poirier, Paris, PUF, 2002, p. 33

14. Walter Benjamin, « Zentralpark. Fragmentos sur Baudelaire », in Charles Baudelaire. Um poeta lírico no apogeu do capitalismo (1938-39), tr. Jean Lacoste, Paris, Payot, 1975, pp. 212-13

15. “Para mim, do ponto de vista do método, é desajeitado interpretar em termos ‘materialistas’ aspectos particulares que evidentemente advém da superestrutura, estes sendo relacionados sem mediação, ou mesmo pela via da causalidade, a aspectos correspondentes da infra-estrutura. A determinação materialista das características culturais só é possível pela mediação do processo global”. Adorno, carta do 10 novembro 1938, in Walter Benjamin, Correspondência,tr. Guy Petitdemange, vol. 2, Paris, Aubier Montaigne, p. 270. (Sublinhado por TWA).

16. Walter Benjamin, Fragmentos, op. cit., p. 219.

17. “Benjamin me explica que seu marxismo não era sempre de natureza dogmática, mas heurística e experimental”. Gershom Scholem, Walter Benjamin, História de uma amizade (1975), tr. Paul Kessler, Paris, Calmann-Lévy, 1981, p. 230.

18. Walter Benjamin, Fragments, op. cit., p. 215. Todas as citações que se seguem remetem ao capítulo “Sobre a crítica literária” desta coletânea, pp. 213-224

19. Friedrich Schlegel, Fragmento crítico n°281, in O Absoluto literário, op. cit., p. 139.

20. Theodor Adorno, Teoria estética, op. cit., p. 166.

21. Albrecht Wellman discute este ponto em “Verdade- aparência-reconciliação. Adorno e a salvaguarda estética da modernidade” ( 1983) em Teorias estéticas após Adorno, Rainer Rochlitz ( dir.) Arles, Actes Sud, 1990, pp. 247-289.

22. Walter Benjamin, Fragmentos, op. cit., p. 203.

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