A Bela Adormecida (La Belle Endormie), de Catherine Breillat (França, 2010)

julho 16, 2013 em Em Vista, Fábio Andrade

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Aprendendo a morrer
por Fábio Andrade

Quando Catherine Breillat anunciou seu plano de fazer uma trilogia adaptada de contos infantis, era perceptível uma interrogação generalizada no meio cinematográfico. De certa forma, a escolha parecia, enfim, o mais efetivo choque de percepção de uma carreira marcada pelo desejo desse choque, começando com a publicação de um romance aos dezessete anos de idade que foi ironicamente proibido na França para leitores com menos de dezoito, até uma reputada e já longeva carreira (de quase quarenta anos) como cineasta interessada na sexualidade feminina e na frontalidade absoluta da representação cinematográfica do sexo, frequentemente explícito, com dois filmes engavetados por décadas pela censura francesa e diversos X conquistados em cotações ao redor do mundo.

Há material suficiente para dez narizes de cera sensacionalistas como este e talvez não exista retrato justo do cinema de Catherine Breillat que não passe por aí, mas, em termos críticos, passada a interrogação inicial, para alguém que já filmou o ator de cinema erótico Rocco Siffredi como iconografia cristã em Anatomia do Inferno (2004), o interesse em uma trilogia a partir de contos infantis parecia estranhamente desafiador. A maior distância entre o universo de Breillat e a tentativa de imaginar suas adaptações de contos infantis, porém, não parecia questão meramente temática, mas sim de tom. Mesmo ao se apropriar do universo do cinema pornô, recrutando inclusive uma de suas maiores estrelas para alguns de seus filmes, o cinema de Breillat sempre foi “tipicamente francês”, com as aspas que acentuam o lado paródico da redutoríssima expressão. Se por vezes seu cinema alcançava enorme força de encenação, a necessidade de uma constante auto-consciência e mesmo de um auto-questionamento de suas próprias bases frequentemente espiralava em um tedioso jogo retórico que muitas vezes destituía de força essa frontalidade, como se mesmo o mais explícito dos planos fosse revestido de uma invisível capa intelectual. A questão que mais intrigava a respeito dos contos infantis era: como falar usando a linguagem de crianças que, naturalmente, não dão corda para malabarismos retóricos?

Passadas todas as interrogações, o que provavelmente ninguém poderia imaginar é que com Barba Azul (2009) e este A Bela Adormecida (2010) – os dois primeiros desta trilogia ainda em processo, que terá como prometida terceira parte uma adaptação de “A Bela e a Fera” – Catherine Breillat realizasse dois de seus melhores e mais particulares filmes. É natural que o lado tipicamente francês de Breillat tenha, também nestes dois trabalhos mais recentes, uma imposição autorista: Barba Azul e A Bela Adormecida são, também, filmes sobre a descoberta da sexualidade feminina – e são muito mais uma fabulação sobre o universo fabular infantil do que a manifestação de um desejo de falar essa mesma língua. Mas, mais do que servir como simples alegoria, em ambos os filmes, os contos originais são confrontados abertamente à auto-consciência e ao auto-questionamento que marca o cinema de Breillat.

Barba Azul (2009), Catherine Breillat

Barba Azul (2009), Catherine Breillat

Em Barba Azul, duas meninas lêem o conto original em um sótão; a narração é entrecortada pela encenação do conto, mas a todo o momento sabemos que o filme “de verdade” não é a história de Barba Azul – por mais prazerosa que ela seja de se assistir – e que ela está ali em função da outra parte. Barba Azul era um filme não sobre uma jovem princesa obrigada a se casar com um príncipe terrivelmente feio (Breillat jamais filmaria essa premissa sem virá-la completamente do avesso), mas sobre as diferentes atitudes de duas jovens leitoras diante do universo do conto de fadas, do universo da ficção e da representação. Enquanto uma delas enfrenta, destemidamente, os destinos da história, a outra, passiva no papel de leitora que lhe foi reservado, é necessariamente sacrificada. Nada é mais próximo do universo de Breillat do que a simpatia por iconoclastas de natureza e o reconhecimento de que a morte traja um vestido de babados brancos.

A Bela Adormecida parece começar justamente deste ponto, já do lado da “leitora corajosa”, que, por sua coragem, teve o privilégio de se tornar princesa. A relação entre o conto e o filme não é metalinguística, como em Barba Azul, mas sim de preparação: toda a história gira em torno do sono de cem anos que separa a infância da princesa de sua vida na França contemporânea, no terço final do filme. Não se trata, portanto, de uma adaptação ou mesmo de uma versão para os tempos atuais do conto original de Hans Christian Andersen, mas sim de uma investigação sobre os efeitos dessa elipse. Como filmar o tempo e o espaço que não estão lá?

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A rigor, A Bela Adormecida é dividido em três atos. O primeiro começa com a maldição que vem com o corte do cordão umbilical, enquanto as ninfas protetoras da jovem princesa se esbaldavam em hedonismo em um banho de rio. Desde o princípio fundador do mito, o prazer vem carregado de culpa. Mas Anastasia (Carla Besnaïnou) cresce ciente da maldição que lhe acomete, sabendo que cedo ou tarde um espinho lhe rasgará a pele, e a colocará em sono profundo. Nesta paciente espera pela hora de dormir que não seja precedida pela leitura de um dicionário e acompanhada pelo tiquetaque de infinitos relógios, Anastasia carrega a coragem da jovem leitora de Barba Azul e se coloca em cima de uma árvore a gritar: “Eu sou o cavaleiro Vladimir! Eu sou o cavaleiro Vladimir!”. A princesa é o cavaleiro. Até que um espinho lhe atravessa a palma da mão – não por acaso, depois de um número de teatro, de representação – cena que Breillat filma com o stacatto no plano fixo que interpela a fluidez da narrativa e instaura o trauma. E, sem fade ou tela negra, caímos no sono.

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Começa, neste ponto, o segundo ato, passado no ínterim do sono de 100 anos de Anastasia, cuja transição é tão fluida que acabamos por esquecer que se trata de uma maldição. Pois o sono profundo não é, necessariamente, um sono sem sonho, um sono em tela preta. Ao contrário, todo o segundo ato de A Bela Adormecida é uma fascinante jornada picaresca por um mundo fantástico e profundamente perverso, combinação improvável de A Viagem de Chihiro (afinal, como veremos, A Bela Adormecida é também uma adaptação do mito de Orfeu, marcada literalmente pela pergunta de Anastasia no primeiro contato com os seres da fantasia: “Vocês são do mundo dos vivos?”), o encantamento mambembe de Pele de Asno e o desconforto latente de Mulholland Drive. Mais do que isso, é especialmente notável como Breillat conserva todo o frescor da atuação de Carla Besnaïnou, carregando em suas unhas longas de plástico um adorável ar insolente (principalmente em relação ao próprio filme) que talvez seja a melhor e mais invulgar tradução da auto-consciência cênica que sempre se colocou como problema central em seu cinema e em seu desejo de uma justa representação da subjetividade feminina (que, aqui, inclui roupas de neve cor-de-rosa, espartilhos, baús de doces coloridos e uma série de outros esforços de adequação representacional que a protagonista precisa aprender sozinha a superar).

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Neste espaço multicolorido, povoado por trens-fantasmas, príncipes albinos, manequins de plástico e anões de uniforme, Anastasia entra não só em contato com seu mais profundo eu, mas descobre, principalmente, a existência do outro. Pois de todos os encontros que engrandecem a trajetória da heroína, há um em especial que lhe condenará (ao bem e ao mal) para todo o sempre. Peter (Kerian Mayan) é o garoto um pouco mais velho que mora na casa que primeiro acolhe Anastasia, e lhe dá, enfim vestes de menino (“Eu sou o cavaleiro Vladimir! Eu sou o cavaleiro Vladimir!”). A cumplicidade do casal de amigos dura pouco, e Peter desaparece, raptado (voluntariamente) pela sensualidade aflorada de uma mulher mais velha, figura mitológica conhecida como Rainha das Neves (Romane Portail), que seduz o garoto e lhe enfia uma estaca de gelo no coração. Daí por diante, Anastasia deixa seu novo lar para sair em busca de Peter, se aprofundando no mundo dos mortos até se matar ela também, com frutos desconhecidos (e vermelhos) nas terras glaciais de sua própria puberdade.

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Não fosse suficiente toda a carga simbólica latente nas imagens transcritas em palavras, existe uma cena específica neste bloco central que estabelece um regime justo de entendimento de o que é colocado em cena, em A Bela Adormecida. Em uma delas, um plano mostra uma linha de trem sendo encoberta por fumaça branca, enquanto o barulho de um trem toma toda a banda sonora. Falta, porém, o trem, de fato. Catherine Breillat estabelece um regime alegórico poroso, no qual o que está em cena serve para falar sobre o que não está em cena, mas o que não está em cena também fala sobre o que está. Da mesma forma que um trem não precisa existir para ser visto – afinal, trata-se de um jogo de faz de conta, e todo jogo de faz de conta é essencialmente alegórico, carregando consigo um princípio de formação que se esconde sob as saias da história – basta uma cancela passar frente ao rosto de Peter para que o espectador saiba que uma transformação ocorreu naquele breve ínterim, naquele simples movimento simbólico, e que ele irá embora de vez no momento seguinte. Os caminhos do amadurecimento são caminhos sem volta.

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O sonho, que de tão belo frequentemente esquecemos que é falso, não é exatamente um sonho. O que Catherine Breillat filma, com extraordinária precisão, neste segundo ato, parece melhor condensado em uma passagem de “O Mal-Estar na Civilização”, de Freud: “No auge do sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer. Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache enamorado declara que ‘eu’ e ‘tu’ são um só, e está preparado para se conduzir como se isso constituísse um fato”. Há, portanto, mais do que sugestão psicanalítica na imagem em staccato (que, sintomática de o que está realmente em jogo aqui, remete a Anatomia do Inferno) do espinho que atravessa a mão de Anastasia, recurso de montagem que será usado uma outra vez, quando Peter segura na palma da mão uma abelha rainha e explica a Anastasia (para seu horror e pronta rejeição) que, após o cruzamento, a abelha rainha aferroa o zangão com quem copulou. O mundo dos sonhos, do desejo, da petite mort, é a descoberta desse estado amoroso que transforma “eu” e “tu” em um só, e todas as suas indesviáveis consequências. O cavaleiro é a princesa.

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Mas com a chegada do terceiro ato, Anastasia (agora interpretada por Julia Artamonov) precisará pagar por esse “engano”, por acreditar que o outro é apenas uma entidade que serve aos nossos próprios propósitos. A princesa acorda 100 anos depois procurando por Peter e encontra Johan (David Chausse), mas insiste que ele é Peter e se entrega sem maiores pudores – a não ser o mínimo necessário para se divertir com isso. O amor pode ter um único nome, até mesmo uma única melodia (em dado momento, Johan aparece sentado ao piano, executando a linha melódica que pontuava de maneira astuta a jornada da heroína até aquele momento, como seu canto de sereia), mas Anastasia já não veste roupas de menino – ao contrário, volta aqui o mesmo vestido branco de Anatomia do Inferno, conectando as pontas cortadas de uma mesma pureza. E depois dessa constatação, da percepção clara de que, mesmo no amor, o limite entre “ego” e “objeto” permanece concreto, intransponivelmente concreto, Johan lhe pergunta: “você ainda me ama como antes?”. E a resposta, a única resposta, a terrível resposta de Anastasia, de sua meia rasgada, e de toda a busca incessante de Breillat na representação dessa violência original, desse “algo” que se quebra e que se cola, mas que não se desquebra, vem com a clareza doce de quem percebeu que o mundo voltou, enfim, a ser mundo: “como antes. Só que agora é depois”.

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