A Academia das Musas (La Academia de las Musas), de José Luis Guerín (Espanha, 2015) e Right now, Wrong Then (Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da), de Hong Sang-soo (Coréia do Sul, 2015)

outubro 13, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

A Academia das Musas (2015), José Luis Guerin

A Academia das Musas (2015), José Luis Guerin

Educar é seduzir
por Pedro Henrique Ferreira

Retomando o problema da relação entre a imagem cinematográfica e o julgamento moral, não basta que o filme assuma posições, levante bandeiras, torne heróis aqueles que exalta e detrate aqueles que considera vilões. A literatura pode reduzir pessoas às palavras, mas a câmera é objetiva e complexifica mesmo as coisas mais simples. Encenar um ser humano como um estereótipo unívoco, simplesmente para que sua posição fique comprometida, é sempre uma redução daquilo que o cinema tem o poder de nos oferecer, e o cinema brasileiro, em particular, incorre neste erro muito frequentemente. Você cria o adversário, estabelece um discurso para ele ou torna-o representativo de uma classe, para então derrubá-lo. Quem já é contra o discurso regozija. Mas não tem nenhum ponto de identificação com o tal adversário e, portanto, não considera que pode também fazer, em alguma medida, parte do problema. Quem é a favor simplesmente ficará inabalado e desconsiderará o julgamento moral imposto sobre a situação ou o personagem, afinal também não se identifica com ele. De modo que o efeito  é quase nulo. Eventualmente, até o contrário do esperado.

Não há particularmente uma cartilha a seguir neste quesito. O que há são problemas a se evitar. Mas eventualmente nos deparamos com casos muito bem-sucedidos e inusitados que valem a reflexão. A Academia das Musas é um deles. O novo longa-metragem de José Luis Guerín mergulha no universo da estrutura acadêmica, perseguindo-a numa narrativa que não só se coloca entre o documental e o ficcional, mas que parece ignorar por completo as fronteiras entre as duas coisas (nunca surge como uma questão em cena). O filme segue as aulas do filólogo italiano Rafaelle Pinto e seu grupo de alunos em discussões sobre a concepção grega (e depois dantesca) da musa como catalisador da arte. Levanta-se a possibilidade da existência de musas no mundo contemporâneo. O filme se detém principalmente sobre um punhado de alunas e se expande para discussões além da sala de aula, acompanhando outros de seus dramas e introduzindo também a personagem da esposa do professor. No entanto, atém-se praticamente sempre à tese das musas.

O lance é que a discussão central de A Academia das Musas não é o conteúdo das aulas, mas a forma de associação e dinâmica que se estabelece entre mestre e alunas. Eventualmente, o conteúdo intelectual se mistura de forma muito feliz nas situações cotidianas, fazendo remissão direta ou incorporando-as, como nas tentativas de elaboração sobre o sentido do amor virtual pela jovem que tem um namoro à distância com um desconhecido. Só que o próprio conteúdo da aula parece estar à mercê do conteúdo do filme, espelhando na relação da musa inspiradora a forma como se constrói os laços do magistério.

O filólogo representa o epicentro de uma visão acadêmica mais tradicional, e suas proposições são atacadas por todos os lados. Tradicional não pelo que se propõe como discurso, mas pela forma como opera, pela logística de subordinação dos alunos ao mestre, da mulher ao homem, da vida à linguagem e ao intelecto. Rafaelle Pinto representa a síntese destes valores, justifica-os a cada instante baseando-se no mito das musas. É a figura de poder que o diretor retrata e detrata. O que é verdadeiramente impressionante e que transforma o filme em muito mais do que uma simples acusação é o espaço quase exaustivo que oferece ao professor para defender-se e problematizar as críticas feitas a ele. O mecanismo é dialético. O suposto vilão ganha mais complexidade. Sua condenação não é enfraquecida, pois quão mais perseguida e elaborada, sua visão de mundo se revela cada vez mais tacanha e absurda.

A Academia das Musas ainda propõe um giro a mais. Numa grande cena que encerra o longa-metragem, filmada pelo lado de fora das janelas de um bistrô, a esposa confronta uma das pupilas, por quem ela acredita que o filólogo nutre um sentimento particular. Se em outros momentos vemos a gênese do ciúme, aqui fica evidente o quanto as personagens femininas (com uma única exceção) também aceitam participar do jogo e ocupar este lugar de subordinação. Ao invés de atacarem o professor, as duas trocam farpas tendo como troféu ser mais querida por ele, embora ambas ocupem espaços diferentes em sua vida. Ou seja, a culpa por aquela estrutura não recai unicamente nele (inclusive o funcionamento da academia foi proposto por uma das pupilas), pois elas também embarcam na loucura. O grande momento de condenação é deixado para o epílogo: dentro do carro, Rafaelle Pinto está com uma outra aluna; Guerin corta o áudio e os observamos, sem saber que espécie de flerte está rolando.

“Educar é seduzir” é a máxima que perpassa o método do filólogo. E o filme se opõe a isso não apenas no nível narrativo, mas também estético. Guerín evita todo e qualquer facilitador, todo e qualquer artifício que sirva exclusivamente para atrair a atenção do espectador ou explicar com clareza as intenções em jogo. Ele nos dá a informação sem decodificações. Tudo é elaborado, até a exaustão, nos diálogos, justamente graças à generosidade que tem para com seu antagonista e a vontade de permitir ao espectador flutuar no meio daquilo tudo sem precisar apontar exatamente o que ele precisa ver e pensar, o que ele precisa entender ou não entender. Justamente por não querer seduzir, por não querer ensinar, A Academia das Musas se torna uma verdadeira aula. Desvincula o processo de subordinação de um único lugar (a academia) e lança-o num universo mais amplo – o problema deixa de ser somente o professor e torna-se os descaminhos da civilização –, concluindo-se num belíssimo filme sobre o dilema da transmissão de pensamentos e experiências. Contra o academicismo hirto e os mitos fundadores da nossa sociedade, Guerín contrapõe a emancipação do espectador. O julgamento moral é feito pelos preceitos formais, pelo gesto artístico e, graças a isso, é muito mais forte.

Outro caso digno de nota é o mais recente longa-metragem de Hong Sang-soo, Right Now, Wrong Then. O diretor sul-coreano também investe no trabalho com imagens que evitam dar ao espectador o juízo moral pronto, fornecendo-lhe material para que tire suas próprias conclusões, embora aponte com certa clareza de que lado está. Sang-soo frequentemente trabalha relações de espelhamento nas suas narrativas, ou situações em que uma coisa ecoa na outra, embora aqui o mecanismo é conduzido à rarefação, e a trama se organize basicamente como um duplo, decisivamente mostrando coisas que se repetem quase ipsis literis. Narrativas fragmentadas é relativamente comum no cinema contemporâneo, de Wong Kar Wai a Miguel Gomes, mas aqui o mecanismo é operado de forma tão explicitamente visando a um modo de comparação entre as duas partes que talvez só tenha correlativo possível num Síndromes e um Século. Ainda assim, a peculariedade minimalista de Sang-soo é maior. No filme de Apichatpong Weerasethakul, a comparação era entre dois momentos históricos – o que ficou e o que mudou –, enquanto aqui estamos diante dos mesmos personagens, o mesmo casal, como acontecia talvez em Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami. Mas enquanto lá a via de comparação era de um relacionamento novo a um mesmo relacionamento velho, o filme de Sang-soo é ainda mais decididamente centrado na repetição, diante da mesma situação filmada duas vezes, com os mesmos personagens, nos mesmos locais.

O que muda então de uma parte para a outra? A atitude de seu personagem diante de um dilema. Right Now, Wrong Then é um filme sobre uma escolha moral e seus efeitos diferentes em ambos os casos. O título em inglês é inequívoco (em português, algo próximo de “agora certo, antes errado”): existem dois momentos, duas ocasiões iguais;  em uma delas, foi feita a coisa certa e, na outra, a coisa errada. O cineasta chega à cidade um dia antes da exibição do filme, conhece uma menina e se apaixona. Deve decidir se contará a verdade ou mentirá para ela. No primeiro caso, ele omite o fato de ser casado, e eventualmente a menina o descobre através de algumas amigas, tietes do diretor. No segundo caso, conta a verdade e, se não chega a consumar seu desejo, ganha uma grande amiga. No primeiro caso, termina como o cínico querido pelas tietes. No outro, como o sincero, capaz de tirar a própria roupa na casa de desconhecidos só porque estava com calor, que não dá importância às tietes, mas que consegue estabelecer um laço com alguém e esta pessoa assiste a seus filmes dedicadamente. A tiete assiste ao debate, a amiga assiste ao filme. São pequenas, mas significativas diferenças.

Há um impulso moralizante e, no entanto, o filme não sente a menor necessidade de coagir o espectador a concordar com ele. A trama é inteiramente narrada por tableaux e planos de conjunto, num trabalho impressionante de atuação que beira o improvisado, com ritmo lento que dita o tempo como um grande bloco de cotidiano. Como em Eric Rohmer, o naturalismo reverberante que é atingido conspira ao essencialismo, ao platonismo, mas o faz sem precisar armar-se ou vestir-se de outra coisa que não é. Não se trata somente de sutileza. É questão de realismo, de encarar o mundo e o cotidiano com certa naturalidade, de enxergar o desenrolar dos acontecimentos com simplicidade, conceber que não necessariamente o correto precisa ser premiado e o incorreto punido, que não vale sacrificar a verdade das coisas para se fazer afirmativas categóricas, que a liberdade do espectador é a liberdade inclusive de tirar conclusões do que é mostrado. Que o melhor a se fazer talvez seja entregar tudo em estado bruto, sem necessariamente facilitar a vida do espectador para que o discurso direto, arbitrário e sedutor o atinja. Que o cinema não faz leis pétreas ou mandamentos. Em suma, que, paradoxalmente, a arte faz julgamentos morais mais efetivos pelo que ela apresenta, pelo espaço-tempo que ela recorta e povoa, e não pela defesa de valores, máximas ou bandeiras. Diante dos dilemas morais, Sang-soo parece dizer que as dúvidas são mais vivas e políticas do que as certezas.

Share Button