63a Berlinale – Apresentação

março 11, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

berlinale

As faces e a geopolítica de um festival
por Pablo Gonçalo

Numa das cenas de Asas do Desejo, de Wim Wenders, o personagem Homero sai da biblioteca e passa a andar num campo ermo, vazio, onde vemos, entre uma vegetação relativamente alta, apenas uma poltrona, na qual ele se aconchega, ficando de frente para o anjo Damiel. Ao fundo, uma longa passarela, prédios baixos, de uma arquitetura dos anos vinte – e o muro de Berlim, cortando o quadro de ponta a ponta. Esta cena foi rodada na Potsdamer Platz, coração, hoje, de toda Berlinale, e um dos locais mais enigmáticos dessa capital. Centro político dos anos 1920 ao nazismo, centro do muro durante a guerra fria, essa camaleônica Potsdamer Platz espelha, hoje, a afobação arquitetônica neo-liberal dos anos 1990, tempo da reunificação das duas Alemanhas. É lá que estão os prédios mais altos da cidade, as abóbadas de vidro um tanto kitsch, um local que mais parece um shopping, e é bem diferente dos demais cantos – já tão diversos –  de Berlim.

À sua maneira, a Potsdamer Platz sintetiza a própria heterogeneidade do festival internacional que ela, todo mês de fevereiro, hospeda. A Berlinale é um evento urbano, que espalha-se pela cidade, pelo metrô – que ganha preço reduzido para os convidados do festival, pelas suas principais instituições culturais, ocupando tanto os cinemas de “bairro”, que ainda sobrevivem, e persistem entre a antiga Berlim oriental e ocidental, como pelos cinemas com cara de multiplex, na própria Potsdamer Platz. Nessa edição de 2013, cerca de trezentos mil ingressos foram vendidos – o que transforma esse festival de cinema no maior fenômeno urbano da atualidade.

As múltiplas faces dessa heterogeneidade ficam mais claras quando flertamos com a inquietação geopolítica da curadoria, e as inúmeras portas ofertadas pela programação. É uma tendência política que está impregnada no DNA do festival. Surgida em 1951, na crescente tensão da guerra fria, a Berlinale foi financiada pelos aliados e, curiosamente, teve uma resposta do governo soviético que, como uma contrapartida, lançou o “Festival des volkesdemokratischen Films”, que poderíamos traduzir como o Festival de filmes do povo democrático.

No entanto, após a reunificação, a Berlinale talvez revele um projeto multicultural com um curioso e forte pendor europeu. Há, de um lado, um recorte político e temático, transversal a todas as mostras, que sugere um debate de idéias permeado por obras ditas  engajadas. Esse recorte fica bem claro quando nos defrontamos com os filmes de Claude Lanzmann, que foi o homenageado dessa última edição. Desde Shoah, a obra desse diretor percorre os mesmos temas: o holocausto, a perseguição anti-semita na Europa, a construção do estado de Israel, mas, sobretudo, revela uma forma de narrativa e de documentário que busca reconstruir uma memória afetada pela diáspora e pelo trauma histórico, uma memória permeada pelo reencontro. É sintomático que Berlim, cidade onde o projeto nazista de extermínio de populações e raças foi arquitetado, hoje homenageie Lanzmann. É como se esse mesmo centro percebesse os exageros de um projeto tido como civilizatório e caro à história colonial da Europa, e, por meio desse festival, percebêssemos gestos que esboçam sentidos políticos, éticos e estéticos, mas que são sempre extremamente cuidadosos frente a uma experiência histórica ainda um tanto recente. Talvez por isso a Berlinale, assim como outros festivais europeus, costuma levantar o tom do debate, numa afronta, quando encontra artistas cerceados pela censura ou por estados totalitários – e, aqui, o caso de Jafar Panahi é sintomático. Nessa Berlinale, ele não apenas teve o seu último filme – Pardé, closed curtain – presente na mostra competitiva, como sua impossibilidade de vir ao festival foi realçada em diversas ocasiões.

Por outro lado, a resposta política, pendendo para o multiculturalismo, adquire uma interessante porosidade. Além da mostra competitiva, a Berlinale é dividida nas seções Panorama, dedicada a filmes que tiveram boa acolhida nos festivais mais recentes, como Sundance; Forum, que tenta revelar novos diretores; o Forum expanded, que flerta, sobretudo, com obras desse cinema expandido, onde encontramos uma forte interação com as artes visuais e vôos mais experimentais – e essa foi a seção, por exemplo, que abrigou os filmes de super 8mm, os quasi-cinema, de Helio Oiticica; e a Generation, que exibe curtas de jovens diretores. Ainda que de forma indireta, é comum vermos temas políticos caros ao contexto da história e de um debate típico da Alemanha permeando as decisões da curadoria, o que, obviamente, nem sempre afeta a qualidade das suas escolhas. É como se tivesse um vetor de força pós-colonial, vindo dos filmes, filtrado por um projeto civilizatório contemporâneo e ainda em construção, com certa feição federalista e multilateral, com objetivos bem precisos, como nos mostram os gestos políticos mais recentes da União Européia.

Nesse ano de 2013, a mostra mais criticada foi justamente a competitiva. Sua curadoria mesclou filmes de artistas já legitimados, como Bruno Dumont, Gus Van Sant e Hong Sang-soo, com filmes de pouca relevância e com forte estética publicitária, como The Necessary Death of Charlie Countrymen, de Frederik Bond. No seu gesto certeiro – reconhecido pelas boas premiações do Júri, que era presidido por Wong Kar-Wai e tinha a presença de Athina Rachel Tsangari – tivemos obras inquietas, do cinema feito na Romênia, como Child’s Pose  (Pozitia Copilului), de Calin Peter Netzer, que ganhou o prêmio de melhor filme, Gloria, do cineasta chileno Sebastían Lélio, Harmonic Lessons (Uroki Garmoni), filme rodado no Cazaquistão e dirigido por Emir Baigazin e Prince Avalanche, dos Estados Unidos, de David Gordon Green, que obteve o prêmio de melhor direção.

O curioso é que a Berlinale acertou quando apresentou diretores novos com obras já maduras, e certamente se equivocou, frente à qualidade dos filmes, quando cedeu apenas para o glamour de diretores reconhecidos ou de obras com renome, mas que buscavam no festival apenas uma plataforma midiática para o lançamento dos seus filmes no mercado europeu, para o qual Berlim é uma boa porta de entrada. Assim, a força da Berlinale talvez estivesse nos segredos das seções como Fórum e Panorama. No entanto, as leituras críticas que podem ser conferidas nesta seção concentraram-se num acompanhamento parcial da mostra competitiva, com filmes que guardavam maior ansiedade, e apenas ocasionalmente flertou com essas obras de novos diretores.

Num artigo de balanço da Berlinale, o jornal Tagespiegel criticava justamente as concessões da curadoria, ressaltando como o principal festival da Alemanha, por essas escolhas, ainda continuaria sendo o terceiro da Europa em importância, sempre atrás de Cannes e Veneza. O artigo mostrava como há um investimento estatal pesado de todos esses países, e na própria Alemanha, mas que a curadoria deveria, pouco a pouco, ousar mais, e assumir uma liderança de pauta de força cinematográfica da Europa para o mundo. É um texto sintomático por revelar uma certa inquietação geopolítica dos festivais que, certamente, merece a atenção da crítica. Cannes, Veneza e Berlim – assim como os mais antigos festivais do mundo – nasceram num contexto de escassez, de possibilidades mais restritas de exibição. Como se percebe, hoje o cenário é bem diverso, com festivais de países “emergentes” querendo obter a mesma influência, o que torna o jogo mais complexo e mais interessante de se acompanhar criticamente. Contudo, o gesto de crítica aos festivais internacionais talvez passe pela compreensão dos crivos geopolíticos que adquirem uma voz coerente entre a curadoria e a premiação – como um complexo sistema de valoração; entre os mundos possíveis de serem vistos, na vitrine das programações, e as combinações entre realidades locais, nacionalidades e arranjos de discursos internacionais ou multilaterais. São questões que passam além do valor individual das obras, mas que acabam por consolidar discursos estéticos de legitimação. Ao se afirmar como um festival internacional fortemente urbano, bastante atrelado à mídia alemã e com todas aquelas inquietações históricas, a Berlinale revela faces de um instigante índice geopolítico.

Share Button