48o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – Dia 6

setembro 25, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Marcelo Miranda

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por Marcelo Miranda

Curta 1: O Sinaleiro (SP), de Daniel Augusto

Curta 2: O Corpo (RS), de Lucas Cassales

A aproximação entre os dois filmes se dá essencialmente pela vinculação ao gênero: ambos se apresentam como suspenses climáticos, de atmosferas cuidadosamente construídas para provocar apreensão, talvez por isso programados para a mesma noite no Festival de Brasília. Para além dessa leitura mais superficial, o que os dois tentam é também apresentar um determinado estado de mundo do isolamento e da paranoia, em ambientes onde o elemento invasivo será o gatilho da suspensão da normalidade.

No caso de O Sinaleiro, a coisa é toda bastante simplista. O curta tenta emular climas e acumula excesso de elementos (sonoros e visuais), numa tentativa quase desesperada de gerar apreensão. O resultado é mais exibicionista do que efetivo (o crédito “Um filme de cinema dirigido por…” já dá pistas do caminho a ser percorrido), com a utilização estetizante do claro-escuro e hipercloses máximos de vermes, latrinas e objetos misteriosos. O empilhamento de coisas e o desfecho anticlimático esvaziam a ambição original.

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Já O Corpo interpela pelo olhar. Ou melhor: pela perversidade do olhar. Do soturno da fotografia à lentidão dos planos, da paisagem rural discretamente situada num mundo que parece vir depois de algum apocalipse aos olhares tortos dos personagens, vem a construção de uma situação microscópica de forte teor fetichista, que se tenta simular como denuncista ou perturbadora.

Uma conexão entre planos dá a ver ideias um tanto tortas: primeiro, o garoto que encontrou a moça caída no mato a vê, nua, saindo do banheiro; mais tarde, ele flagra os pais violentando a moça, que, de novo nua, olha diretamente para o jovem. Nos dois casos, a câmera assume o ponto de vista do menino, como se assim legitimasse o impacto daquilo que ele vê. Porém, o ponto de vista é também o da câmera e dela não pode ser desvinculado, porque há escolhas e resoluções que permeiam o encadeamento de uma obra (“O travelling é uma questão de moral”, para pegarmos a sempre citada provocação de Godard). Na medida em que, a partir da visão do filho, o filme opta por relacionar o vislumbre da nudez da garota ao ato brutal do casal – mas, principalmente, quando decide pela total e irrestrita desindividuação da menina –, o sadismo extravasa a tela e contamina a autoria. É um risco e uma responsabilidade que O Corpo assume, para ao final alegorizar a violência num limite que o aproxima do sensacionalismo à Michael Haneke.

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Longa: Prova de Coragem (RS), de Roberto Gervitz

A impossibilidade de se relacionar com Prova de Coragem está, entre diversos outros problemas, na impaciência do filme de permitir que ele, de fato, aconteça. Estamos no terreno do melodrama disfarçado de drama existencial, a partir da impotência de um homem em assumir os desafios da vida adulta devido ao trauma de juventude que o tornou uma sombra do que ele poderia ser. Já vimos isso retratado de maneira devastadora no cinema (o Tim Robbins de Sobre Meninos e Lobos, filme de 2003 de Clint Eastwood, é somente o primeiro a surgir aqui agora na lembrança), e algo que fica dessas abordagens é que, para esse tipo de personagem funcionar dentro de uma engrenagem dramática, ele precisa de tempo. Tempo de tela, tempo de existência, tempo de trauma: não basta colocar em sua boca palavras do que lhe aconteceu ou resumir em algum flashback mal-ajambrado o que lhe provocou a paralisia. Se não há a apreensão daquilo que se fala ou mostra, se o filme não permite que esse personagem exista e ultrapasse a caricatura e o desenho de roteiro, o fracasso é iminente. Há de se dar a ele permanência e presença – não apenas dentro do plano ou do enquadramento, mas principalmente entre os planos e entre os enquadramentos. Um pensamento de montagem é ferramenta essencial e indispensável nesse tipo de abordagem.

Prova de Coragem renega qualquer gesto desse tipo para se fixar numa narrativa truncada, em que o tempo não é questão (exceto se afirmado com recursos grosseiros de constatação, com direito a som de vento para destacar a mudança temporal do presente para o passado) e as ações mais graves (o acidente de bicicleta, a vertigem) são filmadas como se a câmera fosse um brinquedo quebrado de criança. O filme de Roberto Gervitz prefere, a todo instante, expor cenas dirigidas com mão pesada, nas quais fica perceptível a pressa dos atores em forçar algum tom dramático para dar conta do que lhes foi orientado. Personagens entram e saem saltando de uma cena a outra de qualquer maneira, falando o que devem falar e já cortando para o momento seguinte. Por vezes, é como se víssemos ao material bruto de Prova de Coragem ou (pior) a testes de cena, de fotografia e de elenco, que teriam sido feitos antes de realmente se começar a filmar. A zebra maior é que o filme é todo assim.

Diante de uma aproximação como essa, o olhar crítico se prejudica. Porque nada do que é exposto consegue suplantar o artificialismo amador de sua realização – nem mesmo a história, adaptada de Mãos de Cavalo, romance de Daniel Galera de relativo vigor e que surge empalidecido na transposição, não por questões de fidelidade à matéria-prima (isso pouco importa), mas por ausência de uma poética que tente encontrar no material algum ponto de erupção que lhe permita um mínimo de frescor. Prova de Coragem vai pelo inverso: nada realmente interessa na experiência de assisti-lo, porque nada parece interessar ao próprio filme. É como se ele existisse para se concluir logo, mas precisasse ser preenchido de um amontoado de situações que formem o fio dramático obrigatório do drama. Cinema de execução simples e rápida, a qualquer custo (mas com custo grande, é bom que se saiba), industrial no pior sentido do termo e fracassado por nunca se fazer colocar como expressão.

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