48º Festival de Brasília (2015): Dia 3

setembro 21, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Marcelo Miranda

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por Marcelo Miranda

Curta 1: Cidade Nova (CE), de Diego Hoefel

A melancolia e a vagareza dos sentimentos interrompidos dão o tom de contenção a Cidade Nova, filme que parte do desaparecimento de uma cidade no interior nordestino para tratar, pelas imagens discretamente inquietantes, de um vazio existencial que encontra paralelos na movimentação do personagem no quadro. João (vivido pelo ator João Campos) retorna à cidade natal que não é mais a cidade de seu nascimento: ela agora se tornou um não-lugar que deu espaço a outro lugar. Neste outro lugar, João não se equilibra.

Entre a bebida e a falta de traquejo com a moça que o convida ao amor (Ana Luiza Rios), um pequeno apocalipse íntimo se deixa ver por um plano-sequência de notável habilidade, tanto na duração quanto especialmente na decisão de manter a câmera na posição fixa enquanto os dois atores preenchem e escapam do enquadramento na medida em que seus corpos assim necessitam. Cidade Nova mantém os tons baixos e se interrompe bruscamente (cacoete bastante típico de uma certa cinematografia do esvaziamento afetivo), como a constatar a impossibilidade de se prosseguir naquele mundo desconhecido. João precisaria de outro filme para reincorporar a si mesmo.

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Curta 2: Copyleft (MG), de Rodrigo Carneiro

Copyleft apresenta no prólogo a distopia de um mundo dominado por exigências categorizantes da sexualidade individual, terra de modelos robotizados e exibidos como anúncios de um melhor bem-estar garantido pela heteronormatividade. A provocação do filme de Rodrigo Carneiro está em fazer deste mundo distópico a chaga de seu protagonista (André Nakau), o sacrifício de um corpo que não se identifica nem se enxerga como o exigido socialmente. Acontece que toda a estruturação algo caótica do curta-metragem lhe serve muito mais de grito anódino do que de constatação e reflexão de um estado de mundo. Há pouca intervenção, de fato, num estado de mundo. Tematicamente, o filme se situa nas discussões urgentes sobre homofobia e liberdade, mas acaba por se implodir ao não dar conta de conectar suas várias inquietações como mais que um grito travado na garganta. O humor tragicômico, a cena do vibrador e a presença de Elke Maravilha guardam potencial de que alguma coisa estava ali, pulsando para acontecer, mas Copyleft, mesmo com duração de quase 30 minutos, fica nesse espaço-entre, numa indefinição que nunca se decide: como militar pela causa e, ao mesmo tempo, expressar-se a partir dela?

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Longa: 
Para Minha Amada Morta (PR), de Aly Muritiba

O primeiro longa-metragem de ficção de Aly Muritiba tem um movimento muito similar ao do alemão Phoenix (Christian Petzold, 2014): o filme conscientiza seu público das ações em andamento, mas não informa completamente as consequências destas ações; um jogo de olhares entre personagens e entre a câmera e os corpos em cena se estabelece a cada novo lance de roteiro e a cada movimento do complexo xadrez de sentimentos que se monta a partir de um disparo inicial; o absurdo de uma situação ganha contornos de tragédia anunciada, mas nada de concreto dentro do filme deixa claro qual caminho será seguido. No caso de Phoenix, o centro nervoso são os traumas da 2ª Guerra Mundial e a maneira como alguns sobreviventes de todo o horror tentam reconstruir a si mesmos a partir de estilhaços (físicos e psicológicos). Para Minha Amada Morta tem ambição mais modesta, filiando-se abertamente a um cinema de gênero (no caso, o suspense psicológico, bebendo na fonte da literatura de Patricia Highsmith) sem trazer para dentro questões externas que não afetem o drama central. Trata-se essencialmente de um filme de personagens, com cada presença tendo um papel milimetricamente delimitado e funcional, seja para fazer a trama andar, seja para dar algum respiro na tensão que o diretor Aly Muritiba tenta construir.

A lembrança de Phoenix a partir de Para Minha Amada Morta parece bem mais apropriada do que aquela que deverá ser mais usual na relação a ser feita com o filme quanto mais ele circular: O Lobo Atrás da Porta (Fernando Coimbra, 2013), longa de aspecto similar especialmente nos elementos de linguagem (planos longos, câmera nos poros dos atores, suspensão e tensão em modo crescente) e num ou noutro elemento temático (traição, perseguição, “infiltração”, obsessão, perversidade familiar). Se O Lobo Atrás da Porta se constituía a partir da ocultação e omissão de dados, com objetivo declarado de ser constantemente um filme de surpresas e guinadas narrativas (muitas delas bastante oportunistas para causar o choque pretendido), emulando um certo tipo de abordagem que seria possivelmente apontada por Rogério Sganzerla como próxima do “expressionismo caipira” (termo cunhado pelo então crítico em 1965 ao apontar o provincianismo de alguns filmes brasileiros), Para Minha Amada Morta é um pouco mais consciente das armadilhas nas quais pode cair e faz de tudo para escapar delas – a começar por se assumir, desde sempre, como um filme de narrativa, de dramaturgia e mise en scène a serviço da contação, e usar isso totalmente a seu favor, fixando-se no passo a passo de uma possível vingança sem jamais escamotear quaisquer elementos que levem o protagonista até onde ele está. Se atos violentos serão ou não cometidos, será sempre uma questão de expectativa (sempre diferente para cada sensibilidade). O que o filme de Muritiba consegue realizar muito bem é tornar a expectativa palpável – às vezes para mal, outras para bem, mas no controle calculado do quanto avançar e recuar de acordo com o ritmo e duração de cada cena.

O uso de planos muito longos, vários deles planos-sequências completos, apresenta o filme em blocos de ação marcados por movimentos de corpo e câmera em contato direto com a tessitura de uma narrativa continuamente (e por vezes excessivamente) controlada. A duração desses planos depende do quanto a ação deve ou não avançar. No começo, quando Fernando (Fernando Alves Pinto) procura imagens da traição da mulher, há velocidade maior no andamento narrativo e na decupagem. A esposa falecida é uma fantasmagoria, presente em fotos (ecos do Hitchcock de Rebecca, 1940) e na indefinição granulada de gravações de fitas VHS (recurso também incorporado por Marco Dutra como emulação da figura espectral da mãe em Quando Eu Era Vivo, 2014). Quando Fernando inicia a deambulação atrás do amante da mulher, o filme passa a seguir seu ritmo, a acompanhá-lo constantemente de muito perto e principalmente a desfocar quase todo elemento do fundo do plano, como a turvar a visão do personagem para quaisquer elementos desimportantes à busca empreendida por ele. O jogo de foco e desfoco está onipresente, para deixar bem marcado o estado tensional de Fernando – e, à medida em que a ação avança, de todos ao seu redor. A transformação de objetos do cotidiano (pá, martelo, faca) em potenciais armas de ataque são um recurso que o filme utiliza também para marcar o ritmo interno dos blocos de ação e como pontuações emocionais a serviço dos humores do personagem.

Nesse jogo de mostra-mostra (tal como Phoenix, e não de esconde-esconde, como O Lobo Atrás da Porta), o suspense se materializa pela maquinaria visual e sonora a serviço da honestidade de Para Minha Amada Morta em não querer ser mais do que um exercício de narração – e um exercício elaborado, o que é sempre salutar numa cinematografia que, muitas vezes, ao tentar se conectar ao fabulário mais essencial, por vezes desliza sem rumo e sem saber onde a pista de gelo vai dar. Aly Muritiba trabalha o material do filme com bem mais habilidade do que fizera em outras ficções suas, especialmente nos curtas A Fábrica (2011) e Brasil (2014), ambos muito carregados de sentidos extrínsecos que minavam relações de maior adesão ao relato, talvez por uma preocupação excessiva do cineasta em passar recados a todo custo. A pretensão de Para Minha Amada Morta se resume aos riscos da forma, o que permite ao filme se lançar, acertar e errar, tentar equilibrar o vigor e o fôlego às formas tradicionais com alguma eficiência, sem se comprometer com muito mais do que isso. Em alguns casos, às vezes é o que basta.

O que mais força dúvidas na relação com o filme é seu insinuado sentido conciliatório, abrindo mão da frontalidade do confronto em prol de resolução que mina a guerra por vir. Se em Para Minha Amada Morta isso parece coerente com a construção do personagem (apático e passivo), o filme também se conecta a uma tendência recente do cinema brasileiro de ocultar, omitir ou eliminar o corpo a corpo dos embates (lembrar, apenas como um exemplo, do sempre comentado desfecho de O Som ao Redor, outro filme de vingança que termina num corte da violência para a alegoria). No caso do filme de Muritiba, as cenas finais, envolvendo uma fotografia, e depois o brevíssimo epílogo, repleto de simbolismos de redenção e conciliação, colocam uma camada a mais nessa impossibilidade (incapacidade?) de se efetivamente filmar o choque, seja ele como e qual for.

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