48º Festival de Brasília (2015): Dia 1

setembro 18, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Marcelo Miranda

commandaction1

por Marcelo Miranda

Curta 1: Command Action, de João Paulo Miranda Maria

Alguma coisa está sempre descompassada em Command Action. Os enquadramentos são fragmentados; a edição sonora vem tanto da ação interna do filme quanto completamente de fora; as interpretações ora são naturalistas, ora hieráticas; a ambientação numa feira livre parece expor ao ridículo algumas presenças daquele lugar, mas por vezes causa estranheza pelo registro objetivo e direto; o esboço afetuoso de uma vivência local se digladia com a raiva acumulada no olhar juvenil que desafia a câmera sem necessariamente assumir o desafio. Command Action é um filme sem parâmetro a ser estabelecido de imediato. Como lidar com suas imagens? O que exatamente olhar e para quê?

O curta se desenvolve entre o imaginário dos produtos de um sistema capitalista esmagador (representado pelo robô chinês de nome estadunidense) e a urgência do registro ultrarrealista próximo à “espetacularização do pobre”, de que já escreveu Georges Didi-Huberman ao analisar a maneira como os povos são apresentados pela arte na singularidade da falta de recursos concretos que caracteriza a pobreza material. Pela escolha dos enquadramentos (visões frontais daquilo que é mostrado) e a forma como a montagem dá a ver sempre um plano depois do outro como construções verticais da forma, sem contraplanos que dialoguem com a imagem anterior, Command Action é consciente de suas escolhas e sabe as consequências de onde e sob qual ponto de vista colocar a câmera. Se “todo travelling é uma questão de moral”, João Paulo Miranda Maria, de saída, evita o travelling, para pôr em curto-circuito a moral do filme.

De que maneira, afinal, pensar a cena dos garotos gargalhando diante de uma tela de celular, com a imagem de uma pessoa carbonizada? A perversidade de um momento como este está tanto na reação do garoto (exageradamente histérica) quanto na representação deste instante único dentro do filme (pois antes do garoto, o que se vê é o corpo carbonizado, mostrado por inteiro e subrepticiamente pela elevação do plano). A senhora gritando a venda de tomates ou o homem a dançar para a câmera não têm o mesmo efeito de perturbação, mas guardam o movimento de perversidade: documentam-se corpos e reações ou documenta-se a presença de corpos em reações à permanência da câmera? Conforme Jean-Louis Comolli, “a mise en scène é um fato compartilhado, uma relação. Algo que se faz junto, e não apenas por um, o cineasta, contra os outros, os personagens”.

Command Action é sucinto demais para se permitir arriscar respostas, no que ele guarda muito de seu fascínio e mistério. Instantes antes do final, existe um filme que, prestes a realmente começar, é interrompido pela tela preta, não sem antes evidenciar o olhar indefinido e de enfrentamento do garoto, armado sonoramente com tiros e explosões do robô.

apartedoinferno1

Curta 2: À Parte do Inferno, de Raul Arthuso

A vinculação imediata de À Parte do Inferno está no cinema atmosférico de alguns recentes filmes brasileiros que partem de gestos similares (com resultados muito distintos), como Estátua! (Gabriela Amaral Almeida, 2014), Nua por Dentro do Couro (Lucas Sá, 2014), O Duplo (Juliana Rojas, 2014), Trabalhar Cansa (Marco Dutra e Juliana Rojas, 2011) e mesmo O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2013): universos de fissuras físicas e psicológicas, de ambientação carregada e a herança maldita de uma sociedade dividida entre quem tem e quem não tem – ou, mais especificamente no caso do filme de Raul Arthuso, entre quem está fora e quem está dentro.

John Carpenter é, ao fim e ao cabo, a referência máxima deste cinema pulsante que leva o horror para as tensões sociais e econômicas e para a explicitação destas barreiras. Em Carpenter, a essencialidade extrema do relato tem como função principal armar terrenos de embates repletos de significação, em que o corpo de quem se atira ao conflito é também microuniverso de um contexto histórico e político bem maior. À Parte do Inferno tem como ponto de partida inquietações muito próximas às de Carpenter, tanto na forma como na temática: a sensação de que o apocalipse da ruptura de classes está logo ali na esquina, bastando um movimento em falso para que ele extrapole o plano do imponderável e invada o cotidiano mais simplório.

É muito forte a escolha por protagonistas tão medíocres (no sentido de medianos, simples, sem maiores atrativos para além de suas existências). Todos em cena estão apenas (sobre)vivendo numa cidade onde vários pavios estão acesos a cada canto, e a responsabilidade acaba por ser individualizada quanto mais se finge olhar para o lado diante de uma crise estrutural e de conceituação política, de um dissenso entre os dominadores e os dominados num sistema oportunamente montado para ser dessa forma, como escreveu Jacques Rancière. A voz dissonante é a que revela o dito “inferior” como um igual dos ditos “superiores” ao demonstrar seu entendimento dos mecanismos de esmagamento. Num paradoxo formador de todo o confronto político, a igualdade é provada justamente na existência da desigualdade.

O ambiente doméstico, representação clássica da segurança, perde status no filme com o aparecimento de uma mancha de infiltração na parede do quarto. O rotineiro (trata-se, afinal, apenas de uma mancha) se aproxima do medonho, e o gesto do filme é fazer com que o horror se manifeste pela construção cuidadosa de cada plano e por alguns segundos a mais de exposição antes do corte para o plano seguinte. Mantém-se a suspensão de alguma coisa que se efetiva aos poucos, rumo à decisiva fusão de duas imagens, que se inicia numa invasão doméstica e vai desembocar na tal marca na parede, aquele ímã de novos caminhos, portal de outros mundos (outras classes?).

Arthuso, em texto aqui na Cinética sobre Estátua!, escreveu: “A tensão se dá entre essa estrutura dramática do gênero que tende a apagar-se para caminhar sozinha e a construção dos planos, excessivamente marcada, participando da narrativa quase como uma consciência extra-gênero”. Em À Parte do Inferno, ele leva para a prática o que ele expõe neste pensamento e se utiliza dos códigos mais típicos do suspense para dar vazão a outros movimentos. Ao mesmo tempo em que dialoga com a tradição, o filme tenta rompê-la pela singularidade da maneira como se mostra (de novo, Carpenter está aqui). À Parte do Inferno é tão filme de terror quanto documentário de investigação.

O poder hipnótico da mancha na parede reverbera no uso constante dos dispositivos eletrônicos, estas telas infinitas do mundo contemporâneo reenquadradas dentro do quadro principal, algumas vezes ocupando todo o fundo da imagem, outras ganhando o espaço integral da tela scope. O olhar detido para a mancha se relaciona ao olhar virtualizado para as telas: ambos dão a ver caminhos infinitos, ao mesmo tempo em que alienam o receptor e retiram dele o gesto de resistência. A virtualidade do monitor não é páreo para a materialidade dos corpos que batem na porta. O primeiro rompimento concreto das barreiras se dá pelo som, no instante em que a mulher desliga o monitor e passa a apenas escutar o que acontece do lado de fora. Tal como em M. Night Shyamalan (especialmente Fim dos Tempos), o som se torna efetivamente a ameaça, e sua impalpabilidade é o que ele tem de mais aterrorizante (o mesmo se dá com o barulho constante que emana da mancha).

As relações dentro-fora, inclusão-exclusão, virtual-real ou até criança-adulto que constituem À Parte do Inferno se chocam nos minutos finais, quando o filme não se furta a expor o enfrentamento – ou, principalmente, o incômodo pelo enfrentamento. Os rostos e corpos anônimos versus a face de um homem, uma mulher e um garoto fazem o filme expor, pela construção audiovisual, o abismo sobre o qual ele trata. O horror são os outros? Não em À Parte do Inferno: como já disse Julio Bressane, “o horror não está no horror”.

afamiliadionti1

Longa: A Família Dionti, de Alan Minas

No curta-metragem Engenhos e Usinas (1955), há o emblemático plano de Humberto Mauro sentado à beira de uma árvore, vislumbrando a paisagem da cidade vista ao longe, além dos limites do rural e da natureza: um fragmento de toda uma obra, naquele corpo já envelhecido e ainda conectado às folhas, terras e galhos, porém impelido pelo concreto, pelos tijolos e telhados e pelo avanço da urbanidade. Há um plano similar em A Família Dionti (2015), de Alan Minas, porém com uma diferença significativa: se em Engenhos e Usinas Mauro está posicionado à esquerda da árvore, olhando para a frente com um levíssimo deslocamento para o lado contrário aos caules que servem de moldura a um único lado do plano, em A Família Dionti o personagem de Antônio Edson está posicionado mais ao lado direito, como se numa versão em negativo da imagem de Humberto Mauro.

A mudança de eixo é tanto uma “libertação” do filme à herança de Mauro (que, sob outros aspectos, o longa de Alan Minas nunca deixa de assumir para si) quanto também a tomada de posição sobre suas diferenças com a matriz. Se em Mauro há a concretude da terra e a relação física com o espaço, em A Família Dionti estamos no terreno da imaginação e do realismo mágico herdados da literatura de Gabriel Garcia Márquez e Murilo Rubião. O cenário do interior de Minas Gerais serve como algo muito mais ilustrativo do que orgânico: nunca os personagens parecem realmente conectados àquela geografia senão pelos mitos e “causos” que o filme acumula. Minas está no filme por algum tipo de legitimação de seu viés fantástico. É como se, ao inserir determinado enredo naquelas estradinhas rurais e ao usar o sotaque típico da “roça” e piscadelas sobre os costumes locais, o sentido do imaginário logo brotasse por encanto e se fizesse compreender pela fofice e graça que os diálogos insistem em expor a cada cena.

Por essa porta de entrada no imaginário dos “causos” mineiros, A Família Dionti é todo constituído de metáforas e simbolismos poéticos insistentemente localizados nas falas dos personagens. Nunca basta ao filme expor aquilo sobre o que ele poetiza: é preciso, necessariamente, que a poesia seja dita e redita. Todo símbolo, para o filme, deve estar acompanhado de sua devida explicação, necessária para não dar margem a quaisquer outras possibilidades de entendimento. Num determinado momento, a garota do circo, recém-chegada à região, vê uma formação rochosa e diz: “Isso aqui é o cotovelo do mundo”, para em seguida um plano aberto mostrar a mesma formação, agora já enquadrada como aquilo que a menina compartimentou. A descrição da mãe dos irmãos como tendo um sorriso de “brilho igual ao da Lua” abre espaço para um plano da Lua a ilustrar a percepção do personagem. Um último exemplo resume tudo, enfim: a professora da escola se chama Ilusângela.

O procedimento “símbolo \ ilustração” se padroniza ao longo de A Família Dionti, dando estranha e monótona conotação antiquada ao filme, reforçada pela despreocupação de qualquer pulsão de encenação. Os planos são composições de roteiro, sempre no enquadramento que melhor permita passar algum recado e seguir logo ao próximo. Busca-se a eficiência narrativa (em especial na tentativa de um cinema infantojuvenil de final redentor), mas essa eficiência da boa execução, aqui, tende a fazer do filme uma experiência meramente funcional de “contação” (ilustrada, na prática, num entrecho descolado do enredo central, com vários miniesquetes de histórias e “causos” dentro de um consultório – local onde atende o médico vivido por Gero Camilo, abandonado pelo filme tão logo cumpre a função que lhe cabia na estrutura). A se considerar que o grande mote é a imaginação e fantasia servindo de consolo aos traumas, ou a criatividade como o movimento de amadurecimento da passagem entre a juventude e a fase adulta, A Família Dionti deixa pouca margem justamente ao imaginário de si mesmo como filme ou gesto artístico. Sobram as metáforas. E muitas.

Share Button