in loco - cobertura dos festivais
História Mundana
(Jao Nok Krajok),
de Anocha Suwichakompong (Tailandia, 2009)
Jean Gentil (idem), de Laura Amelia Guzman e Israel Cardenas
(Republica Dominicana/México/Alemanha, 2010)
por Filipe Furtado
Além
(e aquém) das superfícies
A expressão “filme de festival” vem acompanhada
quase sempre de um inevitável aspecto negativo, um julgamento
a priori que sugere – e desconfia de – um desejo do cineasta
de se inserir dentro do universo dos grandes festivais de cinema.
Só que, se a consolidação deste universo de festivais como espaço
viável para certos cineastas desenvolverem suas carreiras criou
espaço para muitos picaretas espertos, ele também abriu espaço
para outro tipo de cineasta, que absorveu muito bem a gramática
deste verdadeiro gênero que se tornou o cinema de festival e a
aplica com habilidade com resultados que, mesmo modestos, também
nos parecem bem honestos. Filmes como História Mundana
e Jean Gentil (foto acima) podem ser descritos como filmes
B de festival, onde o mesmo manancial de idéias e imagens que
um Apichatpong Wheresetakhul ou Pedro Costa surge reconfigurado
de forma menos brilhante. São filmes que criam um problema para
os críticos que cobrem festivais, tão acomodados em produzir hype
ou em denunciar com igual intensidade o fracasso – pois se há
uma constante no meio do olhar sobre festivais é justamente esta
impaciência com o que não atinge o máximo: se um filme não é grande
– ou pelo menos obra de um grande cineasta –, logo desconfiamos
de suas credenciais.
Guzmán e Cardenas já exibiram na Mostra seu longa-metragem
de estréia, Cochochi, que existia neste mesmo meio termo
e recebeu na época alguns comentários entusiasmados. Jean Gentil
passou mais despercebido, mas também merece atenção. Desta vez,
o casal vai até a Republica Dominicana para narrar a história
de um fantasma. Como muitos filmes recentes, Jean Gentil
remete diretamente a Jacques Tourneur e reconfigura em termos
mundanos o universo fantástico do cineasta. Jean é um professor
haitiano em território dominicano, uma
alma perdida vagando e tentando se reencontrar. Jean Gentil
é dividido em duas metades marcadas menos pelas diferenças de
tom e mais de espaço: a primeira, urbana; e a segunda passada
na mata local. Em ambas, Jean permanece um homem à parte, desencontrado,
incapaz de se conectar com ninguém; e a câmera de Guzman e Cardenas
sempre impassível diante dele. Mais próximo ao final, Jean é acolhido
na comunidade, mas Jean Gentil parece não ter interesse
nisso, personagem e filme logo se afastam dali. Nas suas últimas
imagens Jean assume sua condição de fantasma e se dissolve diante
da paisagem enquanto a câmera de Guzman e Cardenas une a mata
e a cidade. Se ali fecha-se a idéia que a dupla de cineastas busca
o tempo todo, e eles extraem dela inegável força, ao mesmo o filme
é incapaz de ir além dela.
A
tailandesa Anocha Suwichakompong também divide seu História
Mundana em dois atos bem distintos. No primeiro, o filme justifica
seu título e acompanhamos um enfermeiro que vai cuidar de um rapaz
de família rica que ficou tetraplégico e não esconde sua amargura
diante da sua situação. Vemos o enfermeiro tomando conta do rapaz
nas situações mais banais, enquanto eles desenvolvem lentamente
confiança um no outro. Então Suwichakompong realiza sua virada,
os dois rapazes visitam um planetário e o filme todo se suspende
para acompanharmos toda a trajetória de vida de uma estrela. História
Mundana vai, assim, do mundano para o histórico. Os dois amigos
se tornam âncoras de um filme que parece querer abraçar todo o
universo. A ambição de Suwichakompong é admirável, mesmo que seu
filme nem sempre seja capaz de acompanhá-la. História Mundana
resulta um filme mais irregular que Jean Gentil (sua estrutura
não-linear por vezes o engessando), mas é também um filme que
se joga diante de riscos muito mais apaixonantes. Anocha Suwichakompong
é, certamente, uma cineasta a se acompanhar.
Novembro de 2010
editoria@revistacinetica.com.br |