in loco - cobertura dos festivais

Aos Hespanhois Conphinantes,
de Angello Cllemente Sganzerla (Brasil, 2008)
por Paulo Santos Lima

Problema de princípio a fim

O cinema abre-se para as mais diversas naturezas de imagens, utilizando-as para construir novos sentidos. É o que Jean-Luc Godard faz com suas “colagens” desde os anos 60 (como estrutura), e que prossegue agora como uma remodelação de imagens distintas, em resultados à frente da própria idéia de cinema e suas imagens-memória. Ou Alexander Kluge, em suas coletas de materiais do cinema mudo revistos sob outras mídias. Enfim, está claro, a partir desses dois casos, que estão em jogo os procedimentos em si e os efeitos criados. E assim vem a pergunta: o que motivou Angello Cllemente Sganzerla a criar um efeito de colagem em seu Aos Hespanhois Conphinantes?

A pergunta prediz algo importante, pois enquanto os dois exemplos situam a órbita de interesse justamente no que resulta desse procedimento de juntar planos filmados e roubados, alterando-os ou não e criando uma nova gramática a partir de um abecedário de línguas diversas ou “emprestadas”, é importante sabermos qual o princípio e o resultado do que um cineasta faz em seu filme. Ou, pelo menos, é o que importa quando as imagens, em si, não trazem absolutamente nada de notável. E o que Angello Cllemente pretende, pela verdadeira salada que ele monta em seu prato cinematográfico, é uma incógnita.

Só está claro o efeito de “filme antigo”, com imagens PB aceleradas, algumas inserções de fotos de época (essa imagem colorida do filme é de divulgação). Mas o que esse “filme antigo” nos fala? Há uma encenação ficcionalizada que se alterna a dados documentais, inclusive mapas, textos informativos, fotos de Getúlio Vargas, etc, tudo baseado em alguns relatos e, sobretudo, em Aos Espanhóis Confinantes, de Othon D’Eça, que fala sobre a missão governamental que cruzou Santa Catarina para firmar a fronteira oeste do país. Um tema tratado em livros didáticos, algo reforçado pela impostação no relato glorificador da empreitada dos personagens – sim, personagens, pois a apresentação das personalidades históricas atende ao drama, com diálogos, incidentes, personalização de heróis, como o presidente Konder.

Essa mistura documentário-ficção não é um problema, tampouco uma novidade, mas as escolhas de Angello Cllemente soam como um quê esquizofrênicas, tanto no material utilizado como na narração que estrutura o longa. Inclusive, a figura do narrador ilustra o arremedo: ele se mantém em distanciamento para informar sobre a História, mas a relata em viés de Telecurso 2º Grau, à la Governo Médici, em tom épico e grandiloquente de “pra frente Brasil” – ainda se dando ao luxo de refletir que o bar local mostrado numa foto seria hoje um cyber café, tendo o telégrafo no que hoje seria a internet, e a cachaça no lugar do café.

O narrador está no filme. É o próprio filme. É seu diretor Angello Cllemente. Narrador bastante perdido e que intervém na imagem, a comenta, reproduz sons de objetos da cena, usa a entonação graciosa para fazer alguma troça. Cllemente intervém no material ao mesmo tempo em que bate continência à História factual de Santa Catarina. As imagens sintonizam-se com tal embaralho. Pode-se definir Aos Hespanhois Conphinantes como um Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos fundido a alguma minissérie de época da Rede Globo. Marcelo Masagão, naquele seu filme, fazia uma costura simplória para falar sobre a brutalização na era industrial. Se o discurso era tacanho, ao menos era claro. Não parece, pela reverência feita aos heróis catarinenses, que Angelo Cllemente quisesse desconstruir o factual.

E aí, diante uma colagem de imagens tão amadora, ressurge a pergunta inicial: se os procedimentos não se realizaram por completo, ficaram largados no meio do caminho, o que restou a esse filme? Reverenciar uma história gloriosa sobre Santa Catarina? Mas com esse registro enguiçado que tanto distancia quanto tenta conexões através de um discurso positivista de “ame ou deixe” e, no final, deixa o filme com uma gramática de imagens a tantas milhas de distância da contemporânea, que é bem mais sagaz? E por que tantas perguntas, se o filme erra já nos seus procedimentos, arruinando assim os efeitos disso? A única coisa que resta a Aos Hespanhois Conphinantes é o próprio filme. A resposta já estava dada lá em cima, com os cinemas de Godard e Kluge dizendo o que significa um diretor optar por procedimentos para almejar um resultado, um efeito na tela. Ou com os filmes, de Godard, Kluge e Angello Cllemente, todos lado a lado nas raias.

Novembro de 2008

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