Ervas Daninhas (Les Herbes Folles),
de Alain Resnais (França, 2009)
por Francis Vogner dos Reis
Impermanência
e mistério
Se nos considerarmos mais inteligentes do que os filmes de Resnais,
apreenderemos muito pouco do que eles têm a oferecer. Por
estarem evidentemente tão impregnados de seu tempo (de
sua beleza, de seu horror, de suas dúvidas), tornam-se
filmes de definição fugidia. O mistério de
seus filmes reside aí, nessa adesão à experiência
que nem sempre é de fruição, mas também
é de conflito e, por mais problemas que se tenha, nunca
se dá por vias conciliadoras e conciliatórias. Talvez
esteja aí, por mais contraditória que essa afirmação
possa soar, sua modernidade que não caduca.
Ervas Daninhas faz parte de uma fase da carreira de Resnais
- que começa com Meló - em que a relação
com o filme passa necessariamente por um fascínio que se
vale menos da consciência do artifício cinematográfico
(coisa que se fala muito sobre esta fase) e mais de uma relação
frontal com os personagens. Esta relação gera empatia
não por que os personagens respondam a projeções
idealizadas, mas porque acredita na capacidade de olhá-los
sem que sejam domesticados ou domesticáveis pelo olho do
cineasta (que necessariamente orienta um juízo) e pelos
de quem assiste (olhar que compra um juízo, mesmo que à
revelia).
Nos
acostumamos a ver, no cinema, imagens das pessoas e do mundo,
e por isso muitas vezes questionamos um filme (e seus personagens)
por não estar resolvidoà maneira que o cinema convencionou
resolver, ou, por outro lado, por não corresponder a um
certo naturalismo necessário. Esses filmes acabam sendo
um outro mundo, análogo ao nosso, representativo
dele, mas raramente com uma relação real com nosso
subjetividade e imaginário. Isso vale não só
para fascínio do clássico (a famigerada e denunciada
ilusão), mas também (e em Resnais, sobretudo),
para o luto do moderno (o beco sem saída). Por isso, a
primeira impressão ao se assistir a Ervas Daninhas
não é a de que estamos vendo um simulacro da vida,
mas um reflexo - e um reflexo turvo (como um espelho torto), pois
essa é a única maneira desse reflexo não
se passar por um "duplo" que por natureza é falso.
E como isso é realizado? Resnais se utiliza de aproximações,
abordagens e procedimentos que em princípio parecem corriqueiros,
mas que se dão de modo bastante inesperado. Toda a lógica
de movimento interno do plano e do quadro não é
reinventada, mas ela serve a um movimento perpétuo de impermanência
das coisas: o deslocamento da câmera implica sempre na objetividade
da ação e no mistério dos seus desdobramentos
(Otto Preminger foi mestre nisso), porque os movimentos são
diretos - apesar de nunca sabermos aonde eles vão dar.
Como, por exemplo, as estranhas gruas em movimento transversal
que existem menos em razão da incapacidade natural em serem
"exatas e expressivas", e mais por causa da vertigem
da imponderabilidade dos acontecimentos, inclusive dos simples
e nada extraordinários - como a visita de uma filha ou
a ida a uma delegacia.
Em
Ervas Daninhas temos uma série de sentimentos gerados
por eventos que em princípio são corriqueiros, tendo
como centro e princípio o encontro de uma carteira roubada.
Os fatos gerados a partir disso motivam reações
nada razoáveis ou racionais, que são filmadas como
sendo da ordem ordinária natural desses mesmos sentimentos.
Georges Palet (André Dussolier) encontra uma carteira em
um estacionamento e começa a ter idéias e projeções
sobre a dona da carteira ao ver suas fotos e documentos. Se apaixona
por ela. Ele também tem pensamentos violentos sobre duas
garotas de mau gosto, mostra certo medo da polícia, rasga
os pneus do carro da dona da carteira porque ela não quer
conhecê-lo. Ele é ameaçador. O mesmo Palet
mora em uma casa burguesa, tem uma bela mulher, uma filha e um
filho que evidentemente têm algum conflito sério
com ele ao qual não temos acesso. Alguns policiais o visitam
e o encontram fazendo serviços domésticos. Percebem
que ele tem fragilidade emocional, uma mistura de melancolia e
desespero; não aparenta ser um indivíduo perigoso,
mas um velho triste.
Com relação a Margarite, no início Resnais
nos dá a ver seu cabelo de moita, seus pés com joanete,
sua voz e sua bolsa amarela que acaba sendo roubada. Aparece brevemente.
É dentista e aviadora. Tem medo de Palet, de suas ligações
e cartas de amor. Depois se sente misteriosamente atraída
e o segue. A coisa toda é um pouco maluca, mas não
é patológica. É francamente humana. Como
qualquer pessoa, eles estão a todo momento tentando refazer
suas ações mentalmente, fazendo projeções
de como as coisas deveriam (ou poderiam) ser, se autorizando a
emitir juízos e em seguida se desautorizando a isso. Mas
como fazer a distinção entre o que é fora
do protocolo das normas sociais e o que supostamente estaria dentro
de um comportamento aceitável? Essa distinção
é até feita, mas não se constitui uma oposição.
Resnais não dá informações sobre as
motivações que estão na raiz do comportamento
dos personagens. Há vácuos, sombras, toda sorte
de rastros, informações parciais, um passado velado
dos personagens, ainda que bastante sugerido nas ações
do presente. Este presente nada mais é do que os efeitos
do que foi feito (ou se deixou de fazer) e a ansiedade (e as precipitações)
do porvir. Ervas Daninhas aceita as relações
das pessoas como elas se configuram. Não que haja conformismo
e complacência no olhar para os personagens. É que
o diretor não tenta "dar um jeitinho" nas coisas
consideradas erradas pelas normas sociais, ele não lança
mão de um diagnóstico de drama psicológico
para entender os comportamentos anti-sociais ou siderados. É
um filme sobre o amor, as relações entre homens
e mulheres, no que essas relações têm de inconciliáveis
e insolucionáveis, do abismo natural entre as pessoas e
a incapacidade do amor em ser uma ponte sobre esse abismo.
Mas
não existe desespero, o olhar de Resnais é sereno.
Talvez por isso o filme gere um sentimento de ausência de
algo, de incompletude. Mas os filmes aos quais não parece
faltar nada (que são fechados, completos) são geralmente
os que compõem a banda dos medíocres. Nos grandes
filmes, a impressão é que há algo que falta,
seja justificativas, algumas explicações, desenlaces,
etc. Com Ervas Daninhas é assim. Tudo é apresentado
parcialmente e tudo nos chega cheio de ruídos. O conflito
é que não temos o que colocar nesse "vazio",
que é onde, na verdade, reside o mistério de Resnais.
Resnais sempre foi o cineasta do mistério. Pode-se até
mudar a pauta histórica (já sabemos de cor e salteado
as "implicações do cinema moderno" via
Resnais), mas o que fica são suas estranhas operações,
seu universo sempre aberto, que se expande e que integra a beleza
e o escândalo, o sórdido e sublime, a mesquinhez
e a generosidade, tudo em constante movimento. Ervas Daninhas
é assim, e é nessa impermanência de todas
coisas (das pessoas, do mundo) que ele é tão verdadeiro.
Janeiro de 2010
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