Heleno, de José Henrique Fonseca
(Brasil, 2012)
por Andrea Ormond
A
euforia da realidade
Um
bom lugar comum a se dizer sobre Heleno, de José
Henrique Fonseca, é que não estamos observando em
nenhum momento a realidade, mas uma estilização,
uma transfiguração da história para caber
“nas quatro linhas da tela” (aqui minha humilde contribuição
aos pastiches acacianos dos maus críticos). De fato, basta
olharmos fotos do Heleno de Freitas real para entendermos que
ele não era, assim, propriamente a encarnação
anterior de Rodrigo Santoro. Tampouco sua prosódia devia
conter tamanha ironia, segurança e sarcasmo cosmopolita
carioca. Acontece que entre lenda e realidade, o conforto da lenda
seduz e oprime. A força do olhar de Santoro, seu rosto
anguloso, dão ao personagem toda esta dimensão mítica.
Heleno já foi Heleno. Agora é Santoro no filme.
Acabou-se. Até Neném Prancha, célebre treinador
do Posto 4, trocaria seu pupilo original por este que renasceu
das cinzas no século XXI.
Tudo gira em volta de uma beleza, de uma elegância, de um
it masculino, que a selvageria nos campos ou a obscuridade
dos nosocômios apenas comentam. A mulher, Silvia (Alinne
Moraes), ama secretamente até o fim. A cantora cucaracha
(Angie Cepeda) fornece momentos musicais deliciosos –
e aquele doce alívio, casual, a que todo macho alfa tem
direito. Heleno-Santoro varia entre as duas, trocando de teams
e decaindo por causa da sífilis, mas sua angústia
é tão extraordinária, tão Actors Studio,
que mesmo babando no colo do enfermeiro em Barbacena, o ex-jogador
ainda transformaria qualquer princesa de Copacabana em torcedora
do América tijucano – derradeiro clube – onde
jogou sua única e tumultuada partida no Maracanã.
Por falar em América, é fácil notar que o
diretor opera com uma nostalgia tão elegante quanto o herói,
e muito mais sóbria, por exemplo, do que o saudosismo jocoso
de A Suprema Felicidade (2011), de Arnaldo Jabor. Heleno
de Freitas viveu em um mundo saudável: as pessoas podiam
fumar à vontade, transavam com gosto, música boa
era “Drume Negrita” e médicos não agiam
feito pregadores protestantes. Cresceu ali, nas areias da praia
mais bonita do universo. E na atmosfera sonhadora, baldia, sonhava
cheirando éter. Imagens se aproveitam compondo o homem
ao meio idílico. A crescente impulsividade de Heleno, sua
agressividade, seu destempero, parecem um corpo estranho. No fim,
alguém diz: “a doença o comeu por dentro”.
Frase definidora da sensação de um elemento perturbador,
incompatível, que brota dentro dele e não só
o destrói – também ao seu tempo, substituído
pelo Brasil dos anos JK, da euforia da construção
de Brasília e da Copa de 58, que apagou o vexame de 1950.
Moças
amavam Heleno e vice-versa, mas ao que parece, Heleno amava o
Botafogo com a mesma intensidade que as mulheres, no entanto sem
ser correspondido. Uma das melhores cenas é aquela no vestiário,
“bicho” pago por um empate. Centroavantes relativistas,
com necessidade de “trabalhar o psicológico”,
são frutos de preleções mornas, escretes
comandados por técnicos picaretas. Jogadores do passado
davam a vida pelo clube e Heleno, completamente lelé da
cuca, parecia querer respeitar esta máxima ao extremo.
Termina vendido ao Boca Juniors, sempre com o discurso borderline
de que ninguém o entende, que há um complô
instantâneo contra sua pessoa. No limite viscoso entre perfeccionismo
e doença, resta a dúvida se a visão do louco
não continha um fundo nevrálgico de lucidez iconoclasta.
Um campo de treinamento em Buenos Aires surge
entre brumas, o jogador treina de sobretudo por causa do frio.
A essa altura do campeonato, já temos a certeza de que
Heleno aponta um caminho para os filmes sobre futebol
no país: desde o curioso Asa Branca (1980), passando
pelos documentários laudatórios – Garrincha,
Alegria do Povo (1963); Isto É Pelé (1974);
Flamengo Paixão (1980) – só o mínimo
que seja verdadeiro interessa ao olhar. No filme de Joaquim Pedro
de Andrade, Garrincha
representa o hosana, trazido de Pau Grande para vingar sua nação.
E Heleno, o que significa? A fotografia de Walter Carvalho, a
trilha sonora, mostram que Heleno de Freitas se encaixará
em um espaço vazio neste imaginário: o do galã
glamouroso. Sujeitos como Renato Gaúcho – biografado
pelo mesmo autor do livro de Heleno, Marcos Eduardo Neves –
e até o “animal” Edmundo, cumpririam bem a
tarefa do craque Valentino, porém deram o azar de um Rio
de Janeiro chinfrim, que trocou a Zona Sul pela Barra da Tijuca,
Billie Holiday pela “mina de fé” no motelzinho
em São Conrado. Heleno já está distante o
suficiente para uma retrofitagem absoluta. O que não elimina
nossa ânsia por uma cinebiografia de Renato Gaúcho:
abatendo suas lebres, atropelando os quarterbacks do
Atlético Mineiro e ouvindo pagode no Vip’s ou no
Shalimar.
Se
o espectador quiser satisfazer-se definitivamente, atente aos
diálogos que o roteiro coloca na boca dos personagens.
Não às conversas no sanatório; não
ao portunhol castiço da crooner; não à
dedicação passiva e sem caráter do falso
amigo que lhe rouba a esposa, no melhor estilo de Gilda
(1946), a original. Principalmente às tiradas
do próprio Heleno-Santoro: literárias e humanas,
ilustrando momentos que vão e voltam, da glória
ao abandono, manipulando o cruzamento do temporal e do eterno.
Só um idiota da objetividade não perceberá
que este vagar disperso, este descompromisso com a compreensão
didática, fica plenamente explicado na conclusão
última: “Eu sou”. Quando a mulher afirma que
vai casar com outro, ele promete vender o apartamento para “morar
no Copacabana Palace. Lá que é o meu lugar.”.
Pois é o lugar de todos nós, Heleno. Se acabamos
fantasmas nas arquibancadas de General Severiano, se acabamos
espectadores de Pelé no cinema, é porque a vida
não faz o mínimo sentido. Explorando esta falta
de sentido, Heleno me parece quase irretocável.
Abril de 2012
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