ensaios
Hanezu
(Hanezu No Tzuki),
de Naomi Kawase (Japão, 2011)
por Filipe Furtado
Prisioneiros
do mito
Hanezu começa
com uma escavação. Estamos nas proximidades de Asuka,
centro inicial da civilização japonesa, e a narração
em off busca nos conflitos históricos e mitológicos
da geográfica local um eco para a pequena história
romântica que o filme desenvolverá a seguir. Naomi
Kawase sempre revelou um talento natural para garantir que o mais
simples dos gestos fosse imbuído de força maior
do que si próprio, algo que se confirma nestes planos iniciais
de grande potência, independente da explicação
do seu significado pelo off.
Nada que se seguirá, porém, repetirá esta
mesma potência, e se estes planos iniciais se revelam o
momento de força do filme é porque eles explicam
muito sobre o seu fracasso. Esse fracasso fica claro quando aproximamos
Hanezu de Firefly, filme que Kawase realizou
em 2001, e com o qual este aqui tem muitos pontos de contato. O
que distancia estes romances condenados é justamente como
cada gesto dos amantes do filme anterior era dotado de uma fúria
e tragédias próprias, enquanto aos amantes de Hanezu
só é permitido existir dentro do mito. A tragédia
aqui não é só pré-ordenada, ela é
drenada de força própria, seus gestos, sejam de
ternura ou violência, se cancelam. É preciso que
Hanezu se abra evocando toda a história da relação
entre os montes, porque não há drama possível
na tragédia dos seus amantes; há somente esta tragédia
como representante de todas as outras tragédias que vieram
antes das deles e se seguiram depois.
O
inchaço mitológico é uma tendência
que, se longe de nova, vem se tornando progressivamente uma freqüente
muleta para disfarçar as fragilidades de filmes recentes,
e é uma pena ver uma cineasta talentosa como Kawase se
entregar a ela. Isso não chega a ser, porém, uma
surpresa completa, já que os filmes da cineasta posteriores
a Shara revelam sempre uma tendência a anestesiar
suas ações ao deslocá-las para um caráter
excessivamente simbólico – algo que era muito notável
em A Floresta dos Lamentos, e é intensificado
aqui. O específico do drama é aos poucos engolido
pela natureza à sua volta. Se Firefly ou Shara
eram filmes em que a ação revelava sempre uma conseqüência
dolorosa, aqui ela é esvaziada. Cada ação,
no lugar de alcançar uma potência, é anulada
pelo peso excessivo que Hanezu tenta aportar nelas. Muito
por isso mesmo, o filme por vezes ainda se perde num simbolismo
pictórico fácil que parece muito distante do que
esperaríamos de Kawase.
Haverá momentos em que a presença física
dos amantes pode ainda assim ressoar, seqüências nas
quais a habilidade da cineasta em extrair força destes
pequenos momentos vividos pelos seus personagens consegue fascinar
o espectador. A estes momentos, porém, logo seguirão
seu contraponto, num filme em que até a morte vem apaziguada,
como só mais uma oportunidade para a poesia mitológica-alegórica
das imagens se afirmar. Nada mais inevitável num filme
em que o corpo é refém de tantos outros elementos
que as conseqüências de seu drama sejam esvaziadas
de tal maneira. Quando a câmera de Hanezu retoma
a escavação arqueológica da abertura, aquela
força que se indicava nas imagens iniciais já não
consegue retornar. As imagens já não revelam que
há toda uma história, elas só pedem socorro
para poderem respirar por si mesmas.
Outubro de 2011
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