Hahaha, de Hong Sang-soo (Coréia do Sul, 2010)
por Fábio Andrade
Saúde!
Hahaha, como todo filme de Hong Sang-soo, é
um filme de pares. Em primeiro lugar, há os pares em tela
– os casais que se encontram, desencontram e reencontram,
ou o próprio par de narradores. Toda a mise en scène
do diretor se concentra em fazer da câmera o terceiro vértice
de um triângulo formado com dois atores que contracenam,
frequentemente dispostos como um triângulo de fato, como
nos primeiros filmes falados. Sempre que um terceiro personagem
está em cena (e as poucas cenas com número maior
de atores normalmente são divididas internamente em blocos,
como a zoom muitas vezes acentua, fechando neste ou naquele par
ao longo da ação), ele serve como testemunha/propulsor
do constrangimento dos outros dois naquele momento de tentativa
(ou manifestação) de intimidade. A raiz do cinema
de Hong Sang-soo se concentra no esforço e nas dificuldades
de um homem em levar uma mulher pra cama ("a origem do mundo",
explicitava Noite e Dia com o quadro de Courbet), e esse
objetivo final vem à superfície no simples e recorrente
gesto de enquadrar dois personagens em interação
– seja um homem e a mulher que ele passou a desejar; um
homem e sua mãe; um homem e seu amigo de longa data; um
homem e um velho herói do passado coreano, conversando
de maneira prosaica em um banco de praça. A tensão
entre os dois é onipresente e indisfarçável.
Em
segundo lugar, há a recorrência de uma estrutura
bifurcada. A filmografia de Hong Sang-soo se concentra na reinvenção
de um padrão que conecta “dois filmes diferentes
dentro de um mesmo filme”, para que uma metade da história
possa incidir e agir sobre a outra, ao mesmo tempo em que sofre
sua ação. Hahaha, nesse sentido, é
o trabalho mais rebuscado de toda a carreira do diretor. Pela
primeira vez na obra de Hong Sang-soo, há uma radicalização
da influência mútua dos dois braços da narrativa,
alternando de fato entre dois narradores (cujas vozes frequentemente
se misturam), acentuando os vazamentos de uma história
na outra a cada novo brinde: saúde! Se na filmografia pregressa
do diretor esse gesto de colocar um espelho frente a outro espelho
era uma abstração que o espectador só podia
completar intelectualmente, a posteriori e à distância,
em Hahaha ele é o próprio tema do filme.
Essas progressões autoristas são necessárias
pois, embora os filmes funcionem perfeitamente de forma individual
e sejam sempre convidativos aos recém-chegados, a visão
em conjunto revela um artista extremamente preocupado com o corpo
de sua obra, sintoma da criação cinematográfica
como um gesto contínuo (diria até uma pesquisa)
do qual os filmes são também recortes, instantâneos
de uma duração (o cinema de Hong Sang-soo sempre
teve algo de científico). Passando delas, porém,
podemos chegar ao terceiro par, que se revela de maneira cristalina
neste Hahaha: na relação com o espectador,
também há duas camadas diferentes, que correm simultâneas
ao longo da projeção. A primeira camada é
a da absoluta excelência narrativa: Hahaha é
um filme excepcionalmente prazeroso de se assistir, não
só pelo apuro de suas gags – um filme verdadeiramente
engraçado, em uma proposta de humor que o diretor aprimora
a cada novo trabalho – mas também pela maneira como
esses tempos fortes e quase constantes são cercados por
uma minuciosa amarração de várias linhas
de elementos que se repetem e conferem sentido ao universo dramático.
É um filme de entretenimento, no sentido literal do termo:
que dispara incessantemente pequenos sinais e possíveis
conexões que mantêm a percepção atenta,
ocupada com a constituição deste impressionante
bric-à-brac.
Se
em dado momento nos identificamos com o protagonista e sua impressão
de que“Tongyeong é uma cidade pequena”, é
porque todo o filme traz a aparência de um circuito fechado,
em que os pontos necessários estão conectados, mesmo
quando os próprios narradores não estão cientes
disso: a mesma baía, a mesma montanha, a mesma mesa no
mesmo restaurante, a mesma rua, o mesmo motel, a mesma maneira
de enquadrar. Os mesmos elementos testemunham as reviravoltas
das diferentes histórias; por isso, acreditamos.
Questão de objetividade; ciência. No contato com
Hahaha, a primeira camada a ser atravessada, e que convida
a uma plena e satisfatória instalação, grita
a existência deste mastermind: o sujeito a controlar
em absoluto todos aqueles encontros, todas aquelas digressões,
todos os aparentes desencontros que levarão apenas a novos
encontros, as fugas de cena que criarão outras cenas -
mesmo que, para isso, seja necessário pular o muro da casa
da mulher que cobiça. É, portanto, a camada onde
se manifesta a autonomia do narrador.
Nisso,
porém, Hahaha traz um dado incontornável:
os narradores estão expostos em tela, e essa impressão
de uma narrativa fechada, em que todos os pontos fazem sentido,
é também uma forma de nos seduzir, de “nos
levar para a cama”. Não à toa, os dois narradores
são um cineasta e um crítico de cinema, aprofundando
a sensação de espelhamento entre o gesto do filme
e o gesto dentro do filme (e, quem sabe, entre o gesto da crítica
e o gesto dentro da crítica). O filme espelha a ação
dos narradores masculinos, que buscam contar a melhor história
para impressionar as sempre crentes e benevolentes personagens
femininas, sedentas por qualquer possibilidade de conexão,
pelo vislumbre de sentido em um mundo caótico e absolutamente
aleatório. Se os homens são os narradores, as mulheres
são os espectadores. É com elas que o filme nos
identifica. Diante da ausência de sentido, basta a aparência
do sentido, os sistemas e articulações que fazem
crer que tudo que é “era pra ser”, como se
a vida fosse também a articulação em tempo
real de uma história bem contada – as saias que migram
de uma história a outra; o boné que passa de cabeça
em cabeça; o almirante que salta da gravura e sopra ao
narrador o sentido da vida. Basta perceber que se namorou um cara
do exército, outro da marinha e agora um da aeronáutica
para encontrar, nesse padrão aleatório, o sentido
da vida. O que importa é o desejo de encontrar esse sentido.
É
aí que se manifesta a segunda camada na relação
com o espectador, que Hahaha traz à superfície
como nenhum outro filme de Hong Sang-soo: a aparência de
ordem e de controle absolutos no mundo ficcional, e a busca desesperada
do espectador por ela, serve apenas para ressaltar a ausência
completa de ordem no funcionamento do mundo real (que se manifesta
no filme). A associação frequente do cinema de Hong
Sang-soo com o de Eric Rohmer faz pensar que, por mais que as
equações tragam os mesmos elementos, os resultados
ao final carregam sinais contrários. Hahaha é
um conto moral, sem a moral do conto. É curioso lembrar
da defesa de Rohmer da câmera imperceptível, na sua
célebre entrevista aos Cahiers du Cinema quando do lançamento
de Minha Noite com Ela, e perceber a progressão
do trabalho de zoom de Hong Sang-soo - mais frequente e incisivo
a cada filme, ao mesmo tempo que vai progressivamente perdendo
seu aspecto zombeteiro, comentarista, e sendo assimilado com maior
naturalidade. Mas a naturalidade revela apenas o que há
de menos natural na transparência... a transparência
é tamanha que revelou as engrenagens quebradas por trás
da cena. Com o perdão do etnocentrismo retórico,
se Rohmer é um cineasta católico, Hong Sang-soo
é um cineasta “ateu”.
Hahaha entorta toda aparência de sentido à
falta de sentido, toda definição ao indefinível:
seus professores nunca deram uma aula; seus cineastas nunca fizeram
um filme. Mesmo o momento ao piano carrega apenas a lembrança
de um belo improviso que, diz o narrador (e cabe ao espectador
embarcar na história sempre consciente de que alguém
a conta), infelizmente já foi totalmente esquecido.
Daí as máximas conflitantes, polvilhadas ao longo
do filme, sobre “ver apenas o que se conhece”, “ver
melhor o que não se conhece”, “ver com os próprios
olhos”, “ver apenas o bem nas coisas” ou, como
diz Jo Moon-kyeong (Kim Sang-kyung), “conheço o que
vejo, tanto quanto vejo”. Daí a discussão
sobre a justeza em dar nome a uma flor sem saber exatamente o
que é esta flor.
Nesse
sentido, por mais que visualmente o cinema de Hong Sang-soo nos
remeta a Rohmer – e as aproximações no cinema
dependem muito dessa remissão, desse “parecer”
– em seu trinômio de cama-mesa-rua (como uma vez bem
definiu Juliano Gomes), e se proponha efetivamente como uma continuação
dele, Hahaha é na verdade a consumação
mais acabada e perfeita de um sentimento de mundo mais presente
em uma tendência frequentemente vista como “pós-moderna”
no cinema norte-americano, que traz à frente os irmãos
Coen, seguidos por filmes tão distintos como Donnie
Darko e There Will Be Blood. São todos filmes
que se apropriam de uma aparência já absolutamente
assimilada pelos espectadores (no caso dos americanos, o cinema
de gênero; no caso de Hong Sang-soo, a simplicidade de seu
próprio cinema, com filmes que podem, todos, ser reduzidos
a uma mesma sinopse, e que se alimentam de convenções
tão antigas quanto o próprio cinema falado) para,
sorrateiramente, tirar o chão que sustenta esse conforto.
Nos filmes de Hong Sang-soo, nos estabacamos com um sorriso...
mas carregamos, depois, as mesmas hematomas.
O
sentimento em relação ao mundo pode ser o mesmo,
e em si nada novo, mas o que torna Hong Sang-soo um cineasta notável
– e tão diferente dessa corrente americana, no que
ela tem de melhor e de pior – é sua atitude diante
desse sentimento. Pois diante de um filme de Hong Sang-soo, o
gesto do espectador - como, veremos ao final, as decisões
das personagens femininas - é, ao mesmo tempo, de encantamento
voluntário e de extrema autonomia. Os narradores acham
que sabem, mas a história que se desenrola em tela
nos traz falhas e deslocamentos que entram em choque com essa
onisciência. Se há um processo de sedução
em jogo, ele é sempre de mão dupla: assim como os
narradores seduzem seus ouvintes, a cumplicidade dos espectadores
é também uma poderosa arma de sedução.
O almirante – que, diz a História, salvou a Coréia,
e é visto não só como um herói, mas
um herói sagrado – aparece em um sonho para Jo Moon-kyeong
e lhe passa uma pílula de sabedoria... mas tudo que ele
pode fazer é transformar essa pílula de sabedoria
em uma cantada. A diferença é que, nos filmes de
Hong Sang-soo, a cantada vai funcionar, e terminar com um ridículo
(mas, é crucial: o ridículo da proximidade, nunca
o da distância) pedido de casamento após o sexo,
com direito ao casal chorando abraçado, na cama do motel.
A diferença é que, ao final, um telefone vai tocar,
abrindo a tal “moral do conto” a toda uma outra história
que o filme se negará a contar, e que seguirá martelando
a cabeça do espectador, a quem é garantida a mesma
autonomia reservada à mulher que disca o número
que deseja em um telefone, simplesmente porque encontrou (ou resolveu
dizer ter encontrado) um boné em casa. A diferença
é que Hahaha não é somente sobre
um homem tentando levar uma mulher pra cama, mas sobre o antes
e o depois: os percursos deste homem e desta mulher até
aquele encontro, e o que este homem e esta mulher decidem fazer
quanto a isso no dia seguinte.
Janeiro de 2013
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