em processo
Guilherme Coelho e os recrutas
por Felipe Bragança

Guilherme Coelho tem 26 anos e está preparando seu segundo longa-metragem. Depois de ter ensaiado a procura de uma dramaturgia documental em Fala Tu, leva seu cinema adiante lançando agora um olhar sobre o universo dos jovens recrutas do Exército Brasileiro. Em comum aos dois filmes, o interesse pelas formas de expressão de uma juventude brasileira de classe média baixa, que procura se desviar de clichês comportamentais socialmente celebrados. Ainda em processo de organização do material rodado, Guilherme aceitou responder algumas questões sobre seus interesses e caminhos esboçados para o filme que virá.

Cinética:  Primeiro de tudo, por que os recrutas? De que forma e que reflexões o levaram a tatear um filme em direção a esse universo de personagens e cenários?

Guilherme Coelho: Uma primeira coisa que me chamou atenção foi nunca termos filmado a vida do recruta no quartel brasileiro. A cada ano, são 75 mil jovens que passam pelo serviço militar obrigatório. É como uma grande universidade. Hoje a maior universidade no país, a Estácio, tem 120 mil alunos. Daí, surge um segundo aspecto que nos interessou que é o papel do exército como tentativa de “formação” de uma identidade. Daí um possível nexo para o filme pode ser a pergunta: como é a vida dentro da instituição que mais representa a ordem no Brasil - um país que odeia instituições e ordem? Por último, o filme apresenta uma possibilidade de encontrar e falar sobre a juventude no Brasil, hoje.

Cinética: Porque a juventude? De que maneira você procura esse foco de atenção como alvo e interlocutor?

Guilherme:  Acho que é frustrante ser jovem no Brasil hoje. Por diversas razões, falta de meritocracia, anemia social, etc. Mas também é frustrante ver que a nossa juventude não está lá com essa bola toda. A universidade não parece nos dizer nada sobre a juventude há uns 20 anos, não sei se isso é muito duro de dizer. Mas acho que esse filme me jogou num vácuo, na banalidade que é crescer no Brasil. As pessoas nascem sem os pais planejarem, tem de começar a trabalhar cedo demais em coisas sem o menor interesse e  acaba que, aos 20 anos de idade, ninguém tem sonho de nada. Acho que isso acontece com os filhos dos ricos também. É aquele lance de se proteger. Tá todo mundo com medo de perder o que já tem, tendo muito ou tendo pouco. É aquele lance de "encostar" em alguém ou algum emprego público e ficar ali, vendo os anos passarem, tomando Skol, e eventualmente praticando um adulteriozinho sem traumas.

Cinética: Você parece ter um olhar bem determinado sobre o universo que observa. Como se aproximar desse tema (os recrutas do exército brasileiro) e seu sub-tema (um certo perfil da juventude classe média baixa e pobre do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense) sem cair em personagens marcados, em pontos de recorrência que apenas imitem o que já se espera deles? Como fazer com que os personagens do filme não apenas cumpram o seu papel no retrato social proposto? Como chegar ao “cinema”?

Guilherme: Eu acho que tem de olhar de perto e esperar que algo novo chame a sua atenção. Acho essencial partir de um olhar de igual para igual. Fugir do paternalismo reinante no país, filmar sem pena de ninguém e também sem achar o personagem o máximo. Um desejo que surgiu durante a produção foi filmar também a "putaria" de um jovem de 19 anos. Esse negócio de falar de mulher, tomar todas e não ter culpa de nada. Isso pra mim tem sido muito legal. Esse aspecto me parecia o anti-documentário. Não falar de passado (eles quase não tem), não teorizar (o que a gente não gostaria de fazer de qualquer maneira), fugir da culpa social (que mata qualquer olhar). O desafio desse começo de edição parece ser o de descobrir quais filmes não se quer fazer e fugir deles.

Cinética: Procurar, então, personagens que antes de tudo tenham presença física e emotiva na imagem e que falem de seu universo de maneira indireta. Como encontrar essa sutileza?

Guilherme: Fomos nas casas de 117 garotos que iriam servir o 25º Batalhão de Infantaria da Brigada Paraquedista (o quartel onde filmamos durante 2005). Em 2004, quando tentamos filmar pela primeira vez a gente tinha ido a 15 casas! Acabamos cancelando as filmagens por falta de dinheiro, mas, no ano seguinte, depois de visitarmos 117 moleques, Zona Oeste e Baixada toda, vi que era para termos esperado mesmo. A gente viu um novo Rio de Janeiro. E pensou numa nova crônica pra fazer sobre a cidade. Como é começar a vida, numa instituição de elite, ser respeitado, motivo de orgulho, emergir nessa geografia? E nos mostrou também que não é filme de favela. É filme do fluminense comum.

Cinética: E sobre metodologias, caminhos? Que estratégias documentais você procurou utilizar para encontrar sua dramaturgia? Entrevistas, observações invisíveis? Fabulações? Como encontrar unidade e essa interação in loco nessa gama de possibilidades?

Guilherme: No começo, muitos dos personagens acharam que iam ficar famosos e nos apelidaram de "Big Brother", o que perdurou até o final das filmagens e de alguma forma deve estar na edição final – até para pensarmos as diferenças entre os dois formatos. No entanto, a nossa relação com eles, a metalinguagem que emerge disso, não pode ser apenas um exercício. Tem de estar a serviço da narrativa, como parte de um dispositivo, afinal, esse é o grande lance de documentário. Sempre nos lembrando da constante negociação com os personagens, revelando quando somos aceitos ou não e como foi esse percurso. Pelo que temos visto na limpeza do material, o filme é bem mais fragmentado em termos de personagens do que pensávamos. Acho que vamos ter só uns dois ou três personagens que aparecem no começo, meio e fim, de modo mais íntimo. Todos os 70 estão no filme, alguns mais, outros menos, mas tem muita história no quartel que não dá pra deixar de fora, só para tentar manter uma coisa mais "fechada". Tem moleque que entra no começo, some, reaparece, tem uma ligação com uma história de um outro, etc. É misturar o cinema direto rodado no quartel, com a interação nossa, com filmagem em casa, em uma coleção vasta de personagens. E ver o que o espectador retém. 

Cinética: O "Documentário", como opção de estratégia de encenação e pesquisa não significa cinema de retrato ou de documentação social se pensado para além do clichê da escola de John Grierson (Nota da Redação: cineasta inglês dos anos 30-40, que propunha um documentário educativo). Eu queria que você pensasse se te interessa e de que forma você veria a sua construção como uma obra de beleza, de arte. O que pode diferenciar a sua construção criativa de uma mera imagem-reportagem informativa? O que você quer encontrar?

Guilherme: Arte, eu não sei. Obra de beleza, acho que sim. E acho que é por isso que encanta e vicia. Tem o lance dos "artesões" do documentário, seus técnicos, as equipes.  Em alguns documentários, um fotógrafo tem de ter tanto instinto, tanta sensibilidade, que o camarada é como um demiurgo jazzista. O documentário tem também essa relação com o efêmero, que o aproxima do teatro, essa grande arte. Dramaticamente falando, acho que isso é uma vantagem desleal para o gênero (se é que constitui um gênero em si.) Certos documentários, quando assistidos, carregam uma tensão dramática especial, simplesmente porque se vê/sente que aquele plano, aquela sequência, não se repetirá jamais. Se não houvesse o filmar, ela provavelmente não existiria (na memória de ninguém, nem do personagem.) No final das contas, o que eu gostaria de encontrar é o prazer de contar uma história (storytelling), essa coisa de fazer as pessoas rirem, chorarem. Mas rir com os personagens e não deles; chorar com os personagens e não por pena deles. E se possível, deixar quem vê o filme com algo novo para se lembrar no dia seguinte.

Bate-papo realizado por e-mail em Abril de 2006.

RECRUTAS
Direção: Guilherme Coelho
Roteiro: Márcia Watzl, Guilherme Coelho e Nathaniel Leclery
Montagem : Márcia Watzl
Fotografia : Alberto Bellezia
Som Direto : Aloysio Compasso, Rômulo Drumond, Renato Calassa e Leandro Lima.
Produção : Mauricio Andrade Ramos, Guilherme Coelho, Nathaniel Leclery e Mariana Ferraz.



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