A Guerra dos Rocha, de Jorge Fernando (Brasil, 2008)
por Rodrigo de Oliveira

Cinema de porta de boate

De todas as previsões que se fizeram a respeito do estrago artístico e político que as produções em moto-contínuo da Globo Filmes causariam ao cinema brasileiro, a mais óbvia delas talvez seja aquela que os produtos recentes da empresa mais tenham se esforçado em desafiar. Não, não é mais o caso de dizer que se tratam de transplantes simples e ligeiramente embonecados da dramaturgia televisiva para a tela grande. A força da novela como catalisador comercial ainda é muito evidente, e talvez não seja mero acaso que A Guerra dos Rocha esteja pronto há quase um ano, mas tenha esperado pelo lançamento até que seu protagonista, Ary Fontoura, voltasse a ser assunto da mídia com um papel de destaque na novela das oito (onde, aliás, outras duas companheiras de elenco no filme também atuam). Mas, assistir ao novo trabalho de Jorge Fernando ao mesmo tempo em que vai ao ar um produto de tamanho refinamento dramatúrgico como A Favorita, por exemplo, faz pensar que o barato do diretor talvez esteja mesmo na disposição regressiva.

Como a novela de João Emanuel Carneiro, A Guerra dos Rocha está inevitavelmente marcado por um desejo metalingüístico, uma obrigação dos tempos atuais, talvez, em aplicar a todas as histórias uma instância autoconsciente sobre o próprio tipo de história que se quer contar. Mas, se no primeiro a idéia é revirar os mecanismos da teledramaturgia moderna, do segundo não se tira mais que uma vontade de raízes bastante duvidosa. A novela a que Jorge Fernando se reporta, os humores envolvidos em seu desejo de narração estão lá nos primórdios, nem dizem respeito ao aporte que o Brasil trouxe a essa linguagem. O que já se via em Sexo, Amor e Traição agora explode em A Guerra dos Rocha: a referência é a tradição da comédia pastelão latinoamericana pré-moderna, deturpada pela veia melodramática obrigatória (pois não se esconde o desejo moral, a mensagem positiva engrandecedora – e nisso, aliás, o filme é regressivo mesmo em relação à absorção que o cinema brasileiro fez desta mesma matriz, se pensarmos que tudo o que um José Carlos Burle queria da dramaturgia cubana dos anos 50 era o rebolado de Maria Antonieta Pons num espetáculo de rumba, quando muito).

O ápice da tensão é vivido através de uma guerra de comida numa mesa de jantar, a grande sacada transgressora está na inclusão de um núcleo maconheiro na história, a graça maior está no travestismo de um ator em velha chata. A fonte oficial já anuncia estes anacronismos todos (o filme é baseado na peça de um dramaturgo uruguaio, escrita em 1962 e já transformada em filme na Argentina, em 1985, utilizando sempre o mesmo atrativo: ator consagrado fazendo o papel da matriarca). Mas A Guerra dos Rocha é também a demarcação de uma personalidade artística, como tem sido também os trabalhos de cinema de Daniel Filho, Wolf Maya, José Alvarenga Jr. e Maurício Farias, ali onde se pode ser mais que um funcionário competente e idiossincrático da máquina televisiva. E se o que Jorge Fernando faz aqui é simplesmente inaceitável, o é menos pelo absoluto terror criativo em que está mergulhado e mais porque pouco antes surgiu deste mesmo ambiente, com estas mesmas implicações, um filme como Polaróides Urbanas, de Miguel Falabella. Diferente destes outros diretores há pouco citados, e muito parecido com este último, se há aqui um desejo de afirmação de uma marca, ela não está necessariamente ligada aos desejos artísticos expressados por Jorge Fernando ao longo de seus trabalhos, mas sim à própria figura do ator-diretor, seu espalhafato, sua afetação, seu humor gritado e imagem de enfant terrible agindo no interior da mais sóbria das organizações comerciais. Uma personalidade artística condicionando uma estética cinematográfica, fazendo aportar na cena um universo de auto-referências reconhecível do grande público e, ao mesmo tempo, surpreendido num novo espaço.

Mas se em Polaróides Urbanas todo este brilho do ícone chegava de fato ao interior da encenação, se traduzia uma consciência de narração e de montagem (algo que já explorei melhor num outro texto), A Guerra dos Rocha não é mais que um palco de “alta-cultura” para a manifestação da egolatria há muito esgotada na tevê e no teatro. Lá, Falabella aparecia nos créditos finais, reinterpretando “ao natural” todos os personagens de seu filme em cenas de making of. Aqui o travestismo que é tão central quanto irrelevante para a trama (é de se perguntar se depois de Grande Otelo como Julieta, e de trinta anos de A Praça é Nossa e congêneres, ainda é possível tirar alguma força de uma operação dessas), este travestismo ressurge com-quem-é-de-direito: não apenas Ary Fontoura, mas também e principalmente Jorge Fernando, que aparece no fim do filme como o filho gay da protagonista, agora uma diva drag dos palcos de um cruzeiro marítimo. Espalhafato, afetação, humor gritado (e dublado por Edson Cordeiro). Momento mais honesto de A Guerra dos Rocha, e ao mesmo tempo aquele que invalida por completo tudo o que se pôde ver antes como se parte de um projeto real de cinema fosse: o pequeno espetáculo de Jorge Fernando, sob muita maquiagem, é tudo o que seu filme já nos adiantara – vontade de palco e de platéia sem interesse verdadeiro pelo produto que se colocará entre um e outro.

Abril de 2009

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