O Caminho para Guantánamo (The Road to Guantanamo),
de Michael Winterbottom (Inglaterra, 2006)
por Paulo Santos Lima

A performance do melodrama

A fonte factual de O Caminho para Guantánamo (marcada logo pelo primeiro plano, mostrando George W. Bush: uma imagem odiosa, senão asquerosa, demônio simbólico da má geopolítica global) faz permissível um jogo cênico irmão das telenovelas latinas: embate entre bem e mal sem nuances, sem fibrilações que ampliem o tal sentido histórico que Winterbottom estampa na cartela de seus filmes. Temos somente a performance do melodrama, das intempéries sofridas por personagens que se rebelam e são barrados pelos titãs (aqui políticos) do enredo. Um cinema sentimentalista, que se alimenta, a todo instante, de imagens-reforço redundantes para manter o balão do drama em altas nuvens. Assim, não basta Bush aparecer no início, dando selo de garantia de que se trata de um filme sobre algo “real” e sobre monstruosidades: uma câmera trepidante dará identidade documental ao filme e os americanos ainda serão mais monstruosos – ou, talvez por má direção e dramaturgia, bufões.

Até mesmo Alan Parker foi mais denso no também dramaticamente ralo O Expresso da Meia-Noite. No filme de Parker, Brad Davis quer sair da Turquia o quanto antes, porque está traficando heroína. É pego e seu drama será menos o de sair da prisão do que cair fora daquele país que nos é apresentado como selvagem. No longa de Winterbottom, três muçulmanos residentes em Londres viajam ao Paquistão para assistir ao casamento de um familiar, e são presos como suspeitos de serem integrantes do Al Qaeda, indo mais tarde para a emblemática prisão militar de Guantánamo. A injustiça não é política, é humana, pois os azarados rapazes, britânicos, nada sabem sobre aquela desgraceira da guerra no Afeganistão, tampouco são simpatizantes do Taleban. Sair da prisão não será o primeiro objetivo, mas sim provar a inocência para assim sair de lá. E, como estava esboçado no início, haverá um grand finale eles repetem a viagem, agora em versão feliz, até os festejos do parente. Se docudrama, ficção baseada em fatos reais ou filme-denúncia, o que importa é o happy end, que desmascara a estrutura performática, ficcionalizada, do longa.

Até por isso a encenação de Parker é visivelmente melhor: o “documentarismo” de Winterbottom permite certos desleixos que chegam ao ridículo, sobretudo nos soldados americanos. Se os turcos de O Expresso da Meia-Noite são monstros, isso está menos no rosto e mais na atuação. Em O Caminho..., o diretor aproveita a etnia, a face dos seus personagens, para trazer significados ao espectador. Significados estes que levam a sentimentos, sobretudo o de comiseração àqueles três “coitadinhos”, que são também imagens-símbolo a serviço de. Curioso é que a polêmica de O Expresso da Meia-Noite (sobre o olhar preconceituoso contra os turcos, discussão até interessante) nasceu do próprio filme, ao passo que este O Caminho... recorre a algo que o antecede, externo a ele, para chamar à discussão. Algo que está ligado a essa típica pendulação entre documental e o encenado do cinema de Winterbottom (presente, por exemplo, em 9 Canções, onde tentava-se um  naturalismo nas falsárias encenações do casalzinho – que fazia sexo, sim, explícito, mas como dois robôs).

No caso de seus docudramas, esse procedimento não atenta contra uma ética propriamente dita – a do documentário, no caso. O problema ético estaria mais na relação entre o cineasta e o público, pois o filme se utiliza de gatilhos para capturar a atenção e paixão da sua platéia: logo surgem depoimentos reais mesclados a encenações filmadas freneticamente, ilustrando a viagem deles até o infortúnio de parar no Afeganistão e serem presos pelos soldados americanos. Depois, vai às imagens de guerra – reais ou não, pouco importa: são poderosas, dramáticas, porque não há na história do cinema fraqueza em imagens com estampidos secos, relâmpagos das bombas batendo no solo, paisagem assombrada pelo fogareiro das metralhas, bastando som dolby e flashes luminosos. E, por fim, a prisão, uma situação cinematográfica, onde a relação corpo e espaço é desenvolvida.

Neste trajeto, O Caminho para Guantánamo revela-se um filme ladrão da estilística documental e costureiro de situações dramáticas, resultando em mau cinema, cujas imagens servem apenas a uma dramaturgia do sentimentalismo, que avança para um sensacionalismo uma vez que a fonte dos temas (deste e, por exemplo, de Nesse Mundo, outro de seus “docudramas”) está na realidade, em eventos presentes nos noticiários - nos telejornais e programas televisivos, que são o porto onde atraca o seu estilo. Algo entre National Geographic e Globo Repórter (as geleiras exuberantes de 9 Canções, a saga do imigrante de Nesse Mundo), mas sobretudo um grotesco mais típico do Brasil Urgente do Datena ou o Linha Direta da Globo, nesse apego que esses programas têm em registrar e/ou reproduzir a dor humana. Nesse sentido, o cinema de Michael Winterbottom é a encarnação do que há de pior da TV.


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