in loco - cobertura dos festivais

O Grito das Formigas (Shaere Zobale-ha),
de Mohsen Makhmalbaf (Índia, 2006)
por Cléber Eduardo

Dicotomias em jogo

As primeiras imagens do filme sugerem certa afetação poética-metafórica, que outros momentos ao longo dele repetirão, vinculados à linha de um “cinema de poesia crítica”. Vemos um close de um rosto de uma mulher com os olhos tampados por uma luva; o plano se abre e a localiza espacialmente, em uma linha de trem. Imagem fundamental para o filme: a cegueira circunstancial dela, símbolo de sua busca espiritual no politeísmo, e a linha de trem retomada adiante.

Em O Grito das Formigas, Mohsen Makhmalbaf coloca em jogo as dicotomias homem/mulher, razão/espiritualidade, materialismo/metafísica. Ao acompanhar um casal de iranianos em sua viagem de núpcias pela Índia, o diretor elege o homem como o revoltado contra a idéia de um Deus e a mulher como sede de crença. Sem disfarçar um olhar dotado de superioridade racionalista diante do misticismo dos indianos, Makhmalbaf desmistifica o país de qualquer noção de sagrado, expondo a miséria como um obstáculo para a aproximação com Deus. Se a mulher vincula a pobreza à satisfação com as pequenas coisas, acreditando que os pobres, por terem poucas expectativas, possuem mais chances de felicidade, o homem fica em dúvida se Deus não existe ou se é um sádico. Parece claro que, embora pareça ser dialético, o diretor está com ele, não com ela. De qualquer forma, é ela que, ao buscar a renovação da espiritualidade em um dos três milhões de divindades indianas, revela a falácia do regime dos aiatolás e, conseqüentemente, do monoteísmo de forma geral.

Procurando integrar a antropologia do universo enfocado (a Índia) a uma encenação e a um ritmo problematizador do pacto com a ficção, Makhmalbaf, como sempre, assume os riscos de uma liberdade pouco rigorosa na “organização” do material (ao contrário de um Abbas Kiarostami, com sua matemática narrativa), estruturando um relato e ao mesmo tempo ameaçando-o com situações autônomas. Optando por planos longos, pelos silêncios no close ou mesmo pelo uso do extracampo nos diálogos, é óbvio o posicionamento do autor por uma expressão híbrida, que tanto deve levar para o cinema características caras ao lirismo persa como assimilar o cinema ocidental de Píer Paolo Pasolini e Jean-Marie Straub/Danielle Huilet, sem com isso prestar reverência ou fazer citações. Questão de sintonia.


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