in loco - cobertura dos festivais

Gretchen - Filme Estrada,
de Paschoal Samora e Eliane Brum (Brasil, 2010)

por Eduardo Valente

O abismo olha de volta

Gretchen – Filme Estrada é um filme doente de si mesmo – o que está longe de ser uma crítica, porque grandes filmes doentes já passaram pelas telas do cinema ao longo dos anos, muito mais vivos e pulsantes do que muitos filmes plenamente saudáveis – só que absolutamente mortos. O filme de Paschoal Samora e Eliane Brum está longe de estar morto, e essa é sua maior qualidade – mas seu maior defeito é o fato de parecer querer diagnosticar e tratar de sua própria doença, mais do que abraçá-la no que ela tenha de mais excitante, pois febril. Isso é algo que já fica claro logo no começo do filme, desde a primeira vez em que os diretores inserem no filme uma voz off “domesticadora” que volta e meia aparecerá, como que para garantir não apenas que todos entenderão o que os realizadores acham que deve representar a história do momento em que a cantora Gretchen decide abraçar uma carreira política como candidata a prefeita da Ilha de Itamaracá, em Pernambuco, como principalmente deixar bem claro que essa imagem é simbólica e importante do país. Não que talvez ela não seja mesmo (todas não são?), mas simplesmente o próprio filme ficar afirmando isso a todoa hora só parece enfraquecer o símbolo.

No entanto, por mais que esses offs pareçam querer tirar do filme qualquer resquício de uma selvageria conteudistica, por sorte o material que os diretores registram é mais poderoso e dúbio do que eles mesmos podem dar conta – o que só torna estes offs um tanto mais reducionistas, ao ponto de praticamente se auto-ridicularizarem. É que há tantas facetas em cada um dos gestos (físicos ou sócio-políticos-culturais) dos personagens em cena, há tanta riqueza nos significantes em estado bruto (para além de qualquer significado que se queira extrair ou impor a eles), que Gretchen – Filme Estrada resulta numa experiência forte quase que independente de sua própria vontade. E não seria este o verdadeiro poder do cinema - ainda mais da matriz documental: por mais que se queira fazer um determinado filme, o mundo que a câmera registra nos força a estar captando muitos outros ao mesmo tempo – que, muitas vezes, são melhores mesmo que aquele que se foi fazer.

Não que Gretchen seja um filme “certinho”, longe disso – há momentos, aliás, em que parece extremamente incerto sobre o filme que deseja ser, ao ponto de incorporar sequências que funcionam quase como clipes de outros possíveis filmes, inseridos neste aqui (pensamos nas entrevistas diretas com os eleitores sobre política, a conversa com Gretchen no carro, o recuo metalingüístico para as autorizações de imagem). Ele apenas parece certo demais de que revela algo sobre a “verdadeira política no Brasil” que seja extremamente novo ou significativo (quando, na verdade, só neste Festival do Rio outros dois filmes tratam do exato mesmo tema – com imagens bem parecidas, aliás – e quando esse bastidor da realpolitik está exposto no cinema, no mínimo desde os anos 60). Gretchen parece não perceber (ou confiar) que img/gretchen.jpgo discurso não é o que o filme faz de realmente forte, mas sim conseguir construir esse ambiente como um background plenamente compreensível para colocar em cena essa esfinge que é Gretchen. Ser esfinge, afinal, é a sina de quem vive em público (seja na carreira artística, seja na carreira política – e ainda mais ao se juntar os dois): não ter mais direito, de fato, a uma “vida real”, porque as interpolações entre a realidade e a imagem construída não possuem mais limites e fronteiras. A tragédia de Gretchen é a de não poder mais recuar – de não poder mais acreditar, ela mesmo, que exista uma “verdadeira Gretchen” (muito menos que ela mesma ainda saiba quem seria esta pessoa). Que Gretchen, o filme, consiga dar corpo a esse sentimento é, de fato, sua grande qualidade: ao final, não sabemos mais sobre ela do que sabíamos no começo (a não ser detalhes menos importantes), assim como no fundo não sabemos nada muito mais sobre a política no Brasil. Apenas estamos mais prontos a abraçar os mistérios que ambos representam, e que não há narração em off que consegue dar conta.

A impressão que fica, ao final, é que este filme realizado por uma grande produtora do país (a Mixer), e por um dos cineastas que mais construiu ao longo dos últimos anos uma carreira prolixa nos vários espaços do documentário (TV, vídeo, cinema), consegue até lidar com a necessidade inerente de uma selvageria estética imposta pelas condições de realização (Gretchen é um filme realmente muito feio visualmente, o que não parece nem um pouco inadequado a como ele precisa ser filmado), mas não consegue aceitar que haja também uma indeterminação ou falta de domínio nos seus sentidos, no seu discurso. O filme está disposto ao risco da feiúra, mas não ao da incompreensão – embora o risco da incompreensão seja, necessariamente, o lugar onde um filme se dispõe a uma verdadeira compreensão (pois nasce diretamente do espectador). Que fique incompreendido, pois: é sua principal possibilidade de força, aquela que nasce da doença.

Setembro de 2010

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