in loco
Lá vem alguém matar o cinema novamente
por Renata Gomes

Como diria o Chicó de Ariano Suassuna (ou de Selton Mello e Guel Arraes): “Ô homem pra morrer, ô homem pra ressuscitar...” Pois dizem que morreu de novo, o cinema – e desta vez quem matou foi Peter Greenaway, logo ao chegar nestas terras para a abertura do Videobrasil, festival de arte eletrônica, cuja 16º edição bienal aconteceu de 29 de setembro a 25 de outubro em São Paulo e contou com vídeos, performances, exposições e debates, além de uma mostra itinerante que seguiu até Salvador.

Essa morte é velha: segundo o “assassino” em questão, o cinema morreu (aliás, nem chegou a nascer) porque o que tivemos nestes mais ou menos cem anos foi uma reles emulação da literatura em formato audiovisual. Algo por demais devedor da narrativa e que – insistem Greenaway e outros algozes – precisa morrer para que outra forma livre e plena possa existir, finalmente. Para matar esse cinema narrativo e fazer nascer um, quem sabe, Cinema, Greenaway nos trouxe a vídeo-performance Tulse Luper Suitcases, um “cinema sem narrativa”, nas palavras dele, e parte do projeto Tulse Luper, que envolve longas-metragens, uma exposição, sites e até um tipo de game.

Como evento em si, a performance foi memorável (donde anote-se que as fotos que ilustram este artigo são de outras das performances de Greenaway pelo mundo): sob um céu cinzento, que refletia as luzes da emblemática avenida Paulista, uma pequena multidão se apertava para enxergar a manipulação ao vivo de vídeos de alta definição, que Greenaway remontava a partir de um monitor de plasma de pelo menos 60 polegadas. Um lindo brinquedão high-tech, cuja superfície, sensível ao toque, dispunha trechos de seus filmes “Tulse Luper Suitcases”, de modo que pudessem ser jogadas, ao sabor do momento, num tríptico formado por telões enormes. Ou melhor, dois: um tríptico na fachada do Sesc Av. Paulista e outro, em espelho, na fachada do Itaú Cultural, para que todos pudessem enxergar.

Ao longo de mais de uma hora, capítulos, trechos, verbetes, imagens das 92 maletas que contam parte da história do misterioso Tulse Luper – e, a partir disto, do mundo – surgiam na tela ao som produzido, também ao vivo, por um DJ. Recuperando a temática enciclopédica pela qual Greenaway é eternamente apaixonado, as imagens apareciam simultaneamente, elipticamente, em sobreposição, de trás pra frente, como ondas. À música, entrecortavam-se diálogos que poucos podiam ouvir, pois o som só chegava com qualidade àqueles muito próximos. Tampouco se ouviu bem o que disse Greenaway, antes da apresentação, escapando aos mais distantes apenas pequenos trechos, dentre os quais “cinema sem narrativa” era o mais fácil de apreender.

A natureza real da performance foi um tanto opaca, contudo. Talvez por não termos ouvido as palavras do VJ, ficou muito difícil entender no que consistia aquilo tudo ali. Porque, sim, as imagens que Greenaway fazia desfilar eram belíssimas, mas performance é processo em si mesmo e, por isso, faz toda a diferença entender até que nível tudo aquilo estava sendo manipulado ao vivo. Assim, ao longo dos primeiros quinze minutos, a surpresa diante do gigantesco aparato foi dando espaço a perguntas e a descobertas por parte do público: “ah, ele está fazendo tudo isso agora? Mas isso muda tudo!” ou “mas essas imagens já estão gravadas?” ou ainda “a ordem muda ou é sempre a mesma?” Pergunta após pergunta, de iniciados e transeuntes, entrevia-se a necessidade de entender o que diabos estava realmente se dando na frente de nossos olhos.

Não houve respostas, contudo. E diante de um público que se prova mais maduro e interessado a cada edição, é um tanto triste que não se tenha havido maiores conversas sobre o processo daquela obra. Difícil pensar numa performance como algo tão opaco – como se apenas no vácuo entre público e autor pudesse se dar algum tipo de sentido, quando deveria ser justamente o contrário. Essa opacidade, aliás, corrobora a blindagem que o festival tem criado em torno de suas atrações principais, empobrecendo o diálogo entre espectadores e artistas e, talvez não ingenuamente, reproduzindo a lógica do espetáculo num universo que deveria ser no mínimo crítico disso tudo.

Isto para não falar na infeliz criação de um nicho de celebridades entre os artistas mais “famosos” do evento. Não foi a primeira vez: na edição passada, em 2005, conseguiram a façanha de alçar a artista Coco Fusco ao patamar de vedete inalcançável, no ato de sua performance defronte ao consulado americano em São Paulo. Os voluntários para a performance – também esses, artistas, pesquisadores, que queriam pensar o processo ao lado da artista – tiveram quase nenhum contato com Fusco, tendo sido “brindados”, ao final do trabalho, com os figurinos que vestiram, devidamente autografados pela artista. Tamanha mise-en-scène acabou por esvaziar a performance de quase toda sua possibilidade crítica, além de gerar grande constrangimento para a própria artista.

Desta vez, foi Greenaway, que saiu do local da performance, na rua, espaço aberto, para o coquetel exclusivo no Itaú Cultural, ridiculamente escoltado por uma boa meia-dúzia de seguranças, apenas para voltar livremente à rua uma hora depois, para conversar tranquilamente com seu público, deixando transparecer que a blindagem talvez seja idéia do festival e não necessariamente dos artistas. Efeito direto da histeria gerada pelo próprio evento em torno de suas atrações principais, o seminário de Greenaway, cujas inscrições foram disputadas a tapa, acabou com alguns lugares vazios: quem, afinal, se arriscaria esperar na porta para entrar numa palestra mais concorrida do que filme cult na Mostra?

Se não houve diálogo sobre a performance, pode-se supor com segurança que aquelas belíssimas superposições, texturas, textos, câmeras-lentas, aceleradas, invertidas, que Greenaway jogava de seu monitor para os telões, já estavam todas prontíssimas, devidamente pré-editadas, eram seqüências que o diretor/VJ escolhia com pouquíssima margem para o acaso, para que o “agora” da performance pudesse fazer daquele momento algo único. Ao dispor numa ordem desconhecida as imagens referentes às diferentes maletas, obrigava-nos a interpretar a existência de uma em relação a outra, ainda assim com muito pouca margem para a verticalidade do instante. E seguíamos meio hipnotizados pelo cintilamento daquelas imagens com definição de película, tentando montar algum tipo de sentido. Se os fragmentos mais ou menos aleatórios sobre o misterioso Tulse Luper ainda nos obrigavam à construção de alguma coisa sobre esse personagem, estamos mesmo falando de algo completamente diverso da narrativa?

Pois a narrativa me parecia lá, ainda que fragmentária, numa organização mais ou menos ao vivo de pedacinhos que ainda preservam duplamente a natureza indexical que marca a narrativa como forma cognitiva mesmo: de um referente em relação ao mundo (maletas, pessoas, cavalos, relógios) e que tentamos, de todo modo, relacionar a outra camada de sentido, criando, ainda, uma lógica de causalidade que explique o que diabos estava acontecendo. Ou seja: é porque sabemos a priori o que são malas, pessoas, relógios que podemos, ao vê-los em determinada ordem (pré-fixada ou não, o que faz de qualquer momento-cinema ainda um instante pleno), tentar criar para eles uma outra ordem de sentido, uma história, enfim.

Por mais que, do público ali amontoado – e buscando desesperadamente uma bebida alcoólica para se esquentar ou mesmo fazer jus ao clima de “carnaval de rua” – uma parte julgasse estar “entendendo tudo” e, uma outra, “não estar entendendo nada”, suspeito que não fosse o caso nem pra tanto, nem pra tão pouco. O “cinema sem narrativa”, e Greenaway, perdido no meio de sua eterna temática enciclopédica, deve saber disto, é menos o fim do cinema do que a introdução de camadas de sentido para aquém e além dela. E isto nem é novo, nem tampouco gera a morte de ninguém.

E o Videobrasil, festival sofisticado, fundamental, que traz outras perspectivas ao audiovisual, com enfoque preciso na produção de países periféricos, precisa pensar em tomar cuidado para não reproduzir, em chave caricata, os mesmos deslizes dos festivais que apartam seu público, cada vez melhor e mais maduro, dos processos e caminhos da arte que pretende divulgar.

Novembro 2007

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta