A Grande Família - O Filme,
de Maurício Farias (Brasil, 2006)
por Eduardo Valente

Uma competente sensação de vazio

Na edição de dezembro de 2006 da Cahiers du Cinema, parece haver um curioso erro de digitação na identificação da crítica de um novo filme francês (Prête-moi ta main): depois do nome, a expressão “de” vem seguida de um ponto, como se houvesse sido esquecido o nome do diretor. Em seguida, lendo-se o texto (na seção de críticas mais curtas), entende-se que não há erro: logo nas primeiras linhas, Jean-Michel Frodon (também editor da revista), identifica que o filme tem um diretor (segundo ele, inclusive porque as leis francesas obrigam que tenha), chamado Eric Lartigau. Frodon continua dizendo que o filme também tem um roteiro com diálogos muito simpáticos do qual se pode até rir (escritos, diz ele, por cinco profissionais competentes), atores talentosos com rostos conhecidos e que na platéia certamente haverá espectadores que rirão bastante. Ele continua dizendo que se lembra do tempo em que via (e ria de) Alain Chabat, o ator/produtor do filme, em uma série de TV – logo antes de ir ou voltar do cinema. E que as duas coisas, na época, eram bem diferentes. E termina por aí.

Isso tudo veio à minha cabeça ao final de A Grande Família – O Filme: um filme de uma competência atroz de escritura de roteiro e diálogos (onde sentimos a mão de Guel Arraes e também a de Adriana Falcão – dois dos quatro profissionais creditados), com atores com uma bagagem mais do que reconhecida na comédia, com uma realização azeitada de produção, e que, no entanto, resulta tão incrivelmente vazio. Vazio não apenas no sentido de conteúdo (que até levanta algum interesse no retrato do homem frente à morte), mas principalmente na questão da necessidade da sua existência. Se Lineu face à morte pode se perguntar porque ele existe, talvez o filme devesse fazer o mesmo. E aí a resposta vem clara: para lucrar algum dinheiro, para ampliar o alcance global para o cinema e para o DVD, etc e tal. Mais nada, além disso. Se A Grande Família continuasse “somente” com seus milhões de espectadores na TV, não faria a menor diferença.

Maurício Farias, o diretor do filme, disse que não se trata de um episódio de TV esticado. Narrativamente, eu concordo: a história até se sustenta na sua duração (embora apelando para um golpe bastante usado no “núcleo Arraes”, o da repetição de uma situação – que assim como acontece três vezes poderia acontecer cinqüenta e gerar um épico). Mas, de resto, o que temos aqui de efetivamente diferente do que se vê sempre na TV? Algumas cenas de externa, talvez? OK, mas não é nada que os primeiros capítulos de novelas e as mini-séries não façam sempre. E, por mais que se vá as ruas, aparentemente as ruas nunca vão ao filme: é curioso como A Grande Família sai para a locação para fingir que elas são o Projac – num processo oposto ao que geralmente vemos, do Projac tentando fingir que é a rua.

De resto, temos todos os indícios do filme genérico à la Globo Filmes: a fotografia empastelada que advém de um processo de finalização desinteressado em “resultados estéticos” (as cenas do comercial na TV têm aparência muito melhor que as do filme como visto nas salas – o que aliás faz sentido); a direção de arte/figurinos auto-centradas; os atores cumprindo seus papéis como quem bate um ponto, mais preocupados com seus momentos dó-de-peito quase chanchadescos do que com a criação de algo (exceção: as cenas entre Pedro Cardoso e Marco Nanini, engraçadas e bonitas de verdade); a música “sintética”, sem vida; um acachapante moralismo sobre a composição familiar, que basicamente parece nos propor que, façamos o que façamos, a vida é sempre a mesma. Some-se a isso então uma decupagem muitas vezes desastrosa quando resolve se lembrar que é feito para o cinema e dispensa a simplicidade multi-câmeras da TV (fiquemos em exemplos: a primeira discussão na sala entre Tuco e Lineu; a primeira conversa no boteco do chope, com um traveling feíssimo para Andréa Beltrão dizer “dancei”; a conversa entre Marieta e Beltrão no quarto, com plongés e contra-plongés desnecessários, distrativos e simplesmente feios, etc ad eternum).

Então, o filme é ruim? Não, na verdade não. Entre os filmes baseados em séries da Globo (descontando O Auto da Compadecida, que foi realizado com o cinema em mente) é disparado o melhor deles - no mesmo grau em que a série em si é bem melhor que a média da dramaturgia televisiva. Mas, tendo ido assistir em seguida Mais Estranho que a Ficção, um filme com preocupações semelhantes de tema (a morte iminente) e de um diretor não particularmente brilhante (Marc Foster), me chocou a diferença na criação de uma atmosfera mínima, de uma real preocupação com os personagens, de um pensamento sobre o timing cômico e das cenas. É apenas mais um filme de uma indústria, sem dúvida: mas aquela é uma indústria de cinema. Triste que aqui estejamos perdendo os parâmetros do que (como já dizia Frodon) devia ser a mínima diferença entre cinema e TV. Mas, não tenho dúvidas: milhões rirão, outros iguais e profissionalíssimos exemplos serão feitos e a sensação de tristeza de não termos uma mínima tradição industrial-comercial disso que se chama cinema vai me acometer de novo. E essa danada sensação de vazio pasteurizado.


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