in loco - 37o festival de gramado
Dia 1: Citar, verbo intransitivo
por Rodrigo de Oliveira

Quase um Tango, de Sérgio Silva (Brasil, 2009)

Sérgio Silva diz que seu filme é sobre “a simplicidade da vida”. A sinopse oficial informa que tudo diz respeito a um pequeno agricultor que passa por várias desventuras ao longo da vida para, com o nascimento do filho, ter a certeza de uma concreta felicidade, “tão intensa que deseja abraçar o sol poente, ao som de um tango” (esta sendo, aliás, a descrição literal do último plano do filme). Mas de verdade mesmo, Quase Um Tango é o filme em que um Marcos Palmeira, ensaiando toscamente um sotaque gaúcho, se apaixona por uma garota do calendário, pela filha mais nova de uma família de religiosos, por uma prostituta e por uma secretária que gosta de filmes franceses, e todas elas são Vivianne Pasmanter com algumas variações de peruca e maquiagem. Uma única mulher, símbolo da obsessão masculina, materialização de um desejo que ignora rostos em nome de corpos, da necessidade dos corpos? Talvez sim, não fosse o caso de Quase Um Tango mostrar que sua idéia mais articulada para a representação do desejo sexual é filmar em close um cavalo relinchando quando seu protagonista alcança o êxtase com a garota do calendário em traje de concurso-da-camiseta-molhada, num delírio chuvoso, azulado e passado num estábulo.

Com algum senso de humor, Sérgio Silva abre o filme dizendo homenagear, com ele, o François Truffaut de Jules & Jim, e lá dentro não faltarão referências visuais diretas a ele e A Noite Americana (vistos em DVD pela encarnação secretária de Pasmanter), a menção à Noite de São Lourenço, um sonho em branco esfumaçado que emula o 8 ½ do Fellini, e a colocação de um exemplar de Os Buddenbrooks, de Thomas Mann, nas mãos de uma personagem. Citar é um mandamento, menos porque aplique ao filme algum senso de historicidade e conseqüência (“daqui viemos, e para ali vamos”) do que pelo tipo de vampirização mais simplória que se pode fazer de um cinema precedente, visto como ideal e eventualmente tornado inatingível por pura falta de talento.

Mas Truffaut é um bom ponto de partida para se entender onde é que faliu este cinema narrativo gaúcho que tenta equilibrar um gosto pelo drama e forma clássicas ao mesmo tempo em que busca um traço de iluminação moderna, seja na relação entre personagens ou na maneira como insere na estrutura fílmica tradicional elementos dissonantes, desestabilizadores da ordem e, portanto, supostamente transcendentes. É aí que se encaixa um quociente citacionista que passa ao largo da relevância chique dos “mestres” anunciados de Sérgio Silva, mas que acontece com toda a força no interior do filme mesmo que ele nunca tenha consciência disso. Há uma inabilidade histórica da maior parte dos cineastas brasileiros ao longo dos anos que tentaram se filiar a uma gramática clássica, da qual Quase Um Tango toma parte involuntariamente, e isto talvez se deva ao fato de que no país nunca houve, de fato, uma tradição de cinema clássico (e por isso falamos em habilidade: não é questão de olhar, de espírito, mas da instrumentalização de uma cena que obedece a regras de construção anteriores a ela). O cinema da Vera Cruz ainda ecoa aqui e ali, e em Quase Um Tango está expresso na própria idéia de um drama interiorano que é filmado com higiene cirúrgica com dois protagonistas que deixam claro a cada diálogo trocado que estão se esforçando ao máximo para parecerem naturais, quando isso só reforça sua condição estrangeira.

Mas nosso cinema clássico é a chanchada, este período que todo cineasta narrativo das antigas gosta de dizer que fez parte de sua formação de cinéfilo, mas nega veementemente enquanto influência na sua transformação em artista, e para qualquer seqüência que se olhe em Quase Um Tango, fica sempre a impressão de que regredimos até mesmo na execução do artesanato mais básico. Se há um cinema brasileiro ao qual o filme de Sérgio Silva dá seqüência é aquele das “cenas animadas” dos primórdios, muito mais próximo de um Canção da Primavera que de qualquer boa novela contemporânea da Rede Globo. O plano geral virou um esconderijo para a incapacidade de observar a cena de dentro, e quando se chega lá, mesmo uma simples dinâmica de campo e contracampo parece um tour de force laborioso e cheio de segredos. Na dúvida, corta-se para o plano aberto: assim, pelo menos, disfarçamos a impossibilidade de bom cinema com a substituição dele pelo mau teatro filmado. Se com sua matriz mais alardeada Quase Um Tango é desastroso, mais ainda será quando tentar recorrer a algum nível de realismo (simplesmente inviável uma vez que se entenda por “realismo” filmar a rotina de um pequeno agricultor como se a ela não se pudesse aplicar qualquer índice criativo, mas apenas a repetição e o enfado – no que, aliás, fica claro que Sérgio Silva não só viu Truffaut errado, mas também todo cinema do qual o francês gostava). Ou, cúmulo das suas ambições, quando tentar recorrer ao peso dramático que a inserção dos sonhos possa trazer à trama de um homem simples, o onírico como espaço de fuga de seu cotidiano desinteressante.

Mas dizer isso seria afirmar que Quase Um Tango pelo menos tentou filmar algum sentimento, que se esforçou para desenvolver uma personalidade simplória a partir de elementos palpáveis de sua experiência no mundo (amores, mudanças, filhos, amigos) e assim, eventualmente, retirá-lo de sua condição inicial. Só que aqui os sentimentos não são filmáveis: conta-se com a boa vontade do espectador para que ele suponha que existiram emoções reais naquilo que vemos apenas como uma sucessão de declarações e planos-emblema (como o do cavalo relinchando, por exemplo; ou ainda o de um caixão de criança que anda sozinho por um cemitério – para simbolizar o temor de Marcos Palmeira pela vida de seu filho em gestação, e não como homenagem a José Mojica Marins). Quase Um Tango acredita que viver a tensão é terminar todo plano com um grito no vazio (e aí teremos variações como “sua puta!”, “Bebeto!” e outros nomes de personagens, ou o tradicional “nãããão!”). Não à toa, a única fronteira do cinema clássico que o filme não ousa cruzar é a do close. Existem alguns primeiros planos até, mas chegar de fato ao rosto dos atores num close real, inescapável, isso nem pensar. É o risco de estar próximo demais e talvez ter que se confrontar com a alma (ou com a ausência dela) nesses modelos ocos a que o filme chama de personagens. Como na transfiguração de Pasmanter em diversas mulheres, ou ainda na recorrência dos delírios de Palmeira, Quase Um Tango é incapaz de observar pessoas. Seu interesse são as aparições, seu negócio real é o charlatanismo sobrenatural, não o cinema.

Agosto de 2009

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