in loco - 37o festival de gramado
Dia 3:
Sem alarmes, sem sustos, sem surpresas
por Rodrigo de Oliveira
A Teta Assustada,
de Claudia Llosa (Peru/Espanha, 2009)
Muito
rapidamente, A Teta Assustada nos apresenta seu melhor
e seu pior, aquilo que poderia torná-lo um filme único
pela consideração da beleza da arte como um dado
fundamentalmente escapista (no que a arte seria, aliás,
o melhor lugar para onde se escapar quando preciso) e também
aquilo que o torna tão banalizador desta mesma beleza,
tão entregue às aparências, tão dedicado
a perceber na dor apenas aquilo que a torna mais exótica
e agradável aos olhos de quem nunca poderia vivê-la
da maneira como estes personagens peruanos pobres e interioranos
vivem, num movimento de afastamento eterno pela diferença
abissal entre o mondo bizarro e um mundo supostamente são.
A primeira seqüência do filme de Claudia Llosa é
estarrecedora: partindo da tela preta, ouvimos o canto de uma
voz envelhecida, lamuriosa, e o que ela canta faz toda a diferença.
A música natural, improvisada, é o espaço
para onde a jovem Fausta e sua mãe se recolhem quando precisam
verbalizar a tragédia de suas vidas, e é como se
esse lugar fosse um campo neutro, onde se pode lembrar do passado
sem se deixar atingir novamente por ele - é na música,
e só na música, que mãe e filha conversam
abertamente, se revelam entre si e para nós mesmos. Logo
veremos o rosto da velha, prestes a morrer, e a face incrivelmente
expressiva de Magaly Solier, dividindo um momento com sua mãe
que, ela sabe, será o último. As duas cantam sobre
casamentos destruídos, estupro, terrorismo e violência,
a obrigação (nunca saberemos se simbólica
ou real) de se comer o pênis morto do marido, tudo embalado
numa melodia que tira imediatamente a estranheza das situações
narradas apenas para nos levar diretamente ao interior daquele
relato. Nesta primeira seqüência, tudo ainda está
submerso em A Teta Assustada.
Mas Claudia Llosa não agüenta o fôlego por
muito tempo ali embaixo. A morte se confirma, um sangramento em
Fausta anuncia o mal, e logo estaremos num posto médico
onde o tio da moça, sem muitas cerimônias, conta
a sinopse do filme ao médico e ao espectador (tudo, é
claro, disfarçado como "diálogo natural",
sobretudo pela escolha de um não-ator para o papel do tio).
O que era do terreno do mistério real e inalcançável
enquanto informação factual no canto entre mãe
e filha vira agora a reafirmação de uma trama tão
absurda - e não importa que ela se dê de fato em
algum lugar do Peru, porque não é com esses olhos
que o filme trata o assunto - que parece saída de um almanaque
de realismo fantástico de quinta. A mãe fora estuprada,
e Fausta é filha desta violência. O medo de um novo
ataque é transmitido através do leite materno e,
para evitar sofrer a mesma coisa, Fausta introduz uma batata em
sua vagina, interditando qualquer relação com o
membro masculino - mas, na verdade, com a idéia do masculino
no geral. A batata, é claro, brota dentro do corpo da moça,
mas nada que Fausta não possa resolver com uma tesourinha
de unha para aparar os galhinhos (que caem aos seus pés,
em plano-detalhe escabroso). Pronto: platéias dos festivais
gringos, regozijem.
E
como se essa tragédia pessoal não fosse o bastante,
ainda temos o contexto. A família de Fausta tem um buffet
e organiza casamentos, cerimônias cafonas e cheias daquele
colorido local tão irresistível de se abusar; no
quintal da casa seu tio constrói uma piscina improvisada
num buraco na terra, onde as festinhas familiares acontecem nesse
mesmo espírito bufão, e quando se vai escolher o
caixão para enterrar a mãe (é claro, não
há dinheiro para comprar algo digno), vemos os diversos
ataúdes temáticos da funerária, igualmente
coloridos, igualmente cômicos. A Teta Assustada tenta
nos convencer que só toma um longo tempo com estas manifestações
do "atraso alegre" porque, afinal de contas, este é
o ponto-de-vista de Fausta, é através dela que o
filme percebe o mundo, o que é uma mentira enorme - a colocação
da atriz nestas seqüências é sempre forçada,
revelando de maneira primária a presença dela ali
para justificar o estrangeirismo do olhar de Claudia Llosa com
o estrangeirismo natural da personagem em relação
a um universo do qual ela se retirou voluntariamente.
É, aliás, nesse desvio tomado a
partir da figura de Fausta que A Teta Assustada prova seu
grande equívoco. Fausta tem a dimensão das grandes
personagens da história da literatura trágica: exilar-se
dentro de sua própria vida, tomar uma decisão tão
infantilmente radical para evitar a violência, só
conseguir se expressar através do relato cantado, tudo
isso a torna uma dessas figuras da alienação com
as quais os instrumentos habituais de aproximação
serão sempre falhos, porque incompletos, mas também
porque ela própria é incompleta, indomável.
A Teta Assustada, ao contrário, tentará o
tempo todo diminuir o peso de sua história a um denominador
mínimo simplório, conseqüente, e no fim dá
a impressão que não tem a menor idéia da
riqueza que registrou durante o tempo todo sem nunca chegar a
filmá-la de fato. Investir no caráter bizarro e
fantástico de Fausta é ignorar que há nela
uma patologia grave, que sua tristeza não a tornou apenas
uma adolescente cambaleante e apavorada que corre para vomitar
toda vez que se encontra com um homem (existem cenas assim), mas
sim um corpo alterado fisicamente, re-humanizado a partir de bases
completamente diversas, e que, portanto, pede também da
câmera uma alteração, uma perspectiva menos
opressora.
Esta é uma história de materialização
das emoções, afinal de contas: o medo de ser violentada
não se transmite apenas pelos olhares, pelas histórias
contadas de mulher a mulher, mas pelo leite materno, plasmado
no líquido. Como nas canções de mãe
e filha, este é um mundo que já se pensa a partir
da experiência da superfície, da tangibilidade das
sensações. Ele já oferece objetos o bastante
para sua exibição (porque compreensão, de
fato, talvez nunca se tenha, e é melhor que seja assim).
Mas A Teta Assustada tenta criar objetos, ele próprio,
a partir de uma agenda que absolutamente não diz respeito
àquelas mulheres, e que fatalmente denunciarão a
sua própria alienação - mas por sentir de
menos, e não como Fausta, disponível demais à
experiência sensível. O corolário do cinema
de arte contemporâneo está todo lá (sobretudo
no automatismo da escolha do plano geral fixo, nas sombras inescapáveis
da fotografia, na observação higiênica não
importa o quão suja a cena se proponha a ser), e Claudia
Llosa consegue ainda reduzir toda a complexidade daquele relato
cantado no início a uma fábula primária da
pequena órfã acossada por um mundo cruel - a entrada
de uma "bruxa má", branca, loira, alta e esguia,
que por acaso também será patroa de Fausta e roubará
seu talento musical, chega a ser constrangedora. Fausta tenta
cantar seu caminho através do desagradável da vida,
enquanto Claudia Llosa filma exatamente para se eximir dele.
Agosto
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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