in loco - 37o festival de gramado
Dia 3:
Um problema de instalação
por Rodrigo de Oliveira
Cildo,
de Gustavo Rosa de Moura (Brasil, 2008)
Obedecendo
a uma seqüência cronológica estrita, Cildo
começa apresentando aquilo que poderia ser a gênese
do artista em que Cildo Meireles se transformou. Primeiro a história
de um andarilho que se abrigou ao pé de sua casa da infância
e que, no dia seguinte, desparece deixando para trás uma
casinha feita de gravetos, para o maravilhamento do menino. Depois,
também pela infância, a história da chegada
do homem à Lua e como, desde então, foi a figura
de Michael Collins - aquele que apenas orbitou ao redor dela,
sem nunca pousar de fato - que sempre o interessou mais que aqueles
outros dois, cujas imagens da aventura espacial se espalharam
pelo mundo. Como em todos os depoimentos que Cildo dará
ao longo do filme, aqui ele é ao mesmo tempo engraçado,
agradável, e absolutamente apaixonante em seu relato, mostrando
uma consciência incrível sobre a natureza de seu
trabalho (feito todo grande artista, ele não se esconde
atrás da máscara do "gênio intuitivo":
tudo é pensado, tem um sentido, uma teoria, uma maneira
de se colocar em relação ao mundo e a história
da arte que não nascem puramente dos sentidos, mas de um
trabalho árduo na decodificação deles).
Quase uma hora de filme depois, veremos Cildo
dando uma entrevista a uma jornalista brasileira diante no Tate
Modern, em Londres, e ele surge repetindo exatamente a mesma história,
de novo apaixonante, seguro e fazendo parecer que houve algo de
muito especial na pergunta da jornalista que o remeteu a uma história
de sua formação que agora divide como se novidade
fosse. Momento parecido acontecerá na abertura da exposição
"Babel", em um museu do Espírito Santo: primeiro
Cildo está em seu ateliê, dizendo para a câmera
do filme o que queria provocar no público ao construir
uma torre de rádios sintonizados em estações
do mundo inteiro, depois Cildo está dando uma entrevista
para a tevê local, repetindo o mesmo conceito à câmera
jornalística, quase palavra por palavra. Que Gustavo Moura
coloque isso no filme de maneira tão direta já deixa
claro que, ao mesmo tempo em que há no documentário
um espaço maior e mais efetivo para a exposição
dessas idéias que Cildo Meireles tem sobre si e sua obra
do que àquele concedido em uma entrevista de jornal, também
parece não haver nada que o diretor possa perguntar para
o qual o artista já não tenha uma resposta imaginada
e, em muitos casos, repetida em moto contínuo a qualquer
interlocutor que apareça, não importa o quão
elaborada seja a tal pergunta. Tudo o que Cildo diz no filme é
novo apenas para ele, o filme, e não para Cildo. O filme
é um espaço único, mas definitivamente não
é um espaço exclusivo.
Se
sobre a fala de Cildo Meireles o filme fica, portanto, impedido
de intervir, resta a Gustavo Moura tentar trabalhar sobre o lugar
onde a experiência do artista é aberta ao ineditismo
e à exclusividade, e esse é o lugar do público
diante da obra - que, também com palavras do próprio
Cildo, é pensada exatamente para esse fim, para que o contato
com uma instalação sua seja renovável sempre
que uma nova pessoa se coloque dentro dela e a perceba a partir
de seus próprios sentidos, guiados pelo que chama de "alta
definição": uma obra tão segura de si
que impeça qualquer elucubração exterior
a ela, restando o interior, e apenas ele, para que a experiência
seja real e a fruição efetiva. E aí está
a grande questão estética de Cildo: como
filmar uma obra que é um espaço tridimensional existente,
e não apenas imaginado por uma perspectiva forjada à
pinceladas? Os filmes que Alain Resnais fez sobre obras de Van
Gogh e Picasso vem à mente: lidando com a superfície
plana, figurativa, o cineasta criava lógicas narrativas
internas não necessariamente existentes na obra (duas figuras
humanas vistas de longe como parte do mesmo quadro poderiam, a
partir da criação de uma dinâmica de plano
e contraplano que os isolasse, passar a dialogar sem que o artista
houvesse nunca previsto aquele espaço como tal), e com
tudo isso criava-se uma terceira instância de aproximação
do quadro, que não tentava "entender" a visão
do artista nem mimetizar a experiência do espectador diante
da tela, mas sim torná-la um objeto de cinema autônomo.
Cildo, ao contrário, tentará
a segunda para chegar à primeira: colocando-se no interior
das instalações, tenta reproduzir a sensação
física do espectador para que, assim, todos os conceitos
desfiados por Meireles em seus depoimentos possam tomar corpo,
sair da teoria e ganhar alguma materialidade aos olhos do público
do cinema. E essa é, evidentemente, uma tentativa que já
nasce frustrada. Reproduzir a experiência da instalação
não é apenas instalar-se nela, muito porque o problema
com que Gustavo Moura se depara é exatamente oposto ao
de Resnais: não é o caso de dar relevo e profundidade
àquilo que é naturalmente plano (a tela da pintura),
mas de sujeitar o que é naturalmente cheio de relevo e
profundidade à uma armadura irremediavelmente superficial
(a tela de cinema). Se a afirmação de Cildo Meireles
de que "o melhor lugar para a obra de arte é a memória"
é verdadeira - e firmemente acreditamos que sim - resta
ao filme, em sua insistente tentativa de assumir o ponto de vista
de um espectador real diante de uma obra que incorpora tempo e
espaço simultaneamente, forjar uma memória de trabalhos
nunca vividos por quem o assiste (não é o caso de
ver, mas de viver, quando se trata de Cildo Meireles). Ao filme
é impossível superar sua natureza de eterno retardatário:
o registro até está lá, reproduzido "eternamente"
pelo cinema, mas a experiência é do domínio
de um passado inalcançável e, portanto, irreprodutível.
Não à toa, Cildo é melhor justamente
naquilo em que o cinema consegue mais se aproximar da espacialização
da arte instalativa, a edição de som. Se da planura
da tela e sua profundidade falsa não podemos fugir, pelo
menos o som ainda tem uma dimensão de profundidade real:
temos caixas de som atrás da tela, nas laterais e no fundo
da sala de cinema, de cada uma delas surge um ruído diferente,
percebido pelo corpo a partir de lados diferentes, e mesmo de
sentidos diferentes (o tato é aguçado tanto quanto
a audição, os ruídos agem na pele), e tudo
pode mudar dependendo de onde o espectador se sente, em que posição
fique na poltrona, à que distância esteja de qual
saída de som. Isso Cildo faz de maneira brilhante,
o que o torna desde já um desses filmes que nasceram verdadeiramente
para a experiência in loco (esperar para vê-lo
em DVD ou na televisão seria um pecado). E assim, por uma
via paralela, e que certamente chamará muito menos atenção
do que a retórica encantadora de Cildo Meireles ou a chance
frágil, mas possível, de se conhecer seu trabalho
sem precisar esperar por uma exposição ou bancar
uma viagem a Londres, Cildo acaba conseguindo conversar
com seu objeto na mesma sintonia e, mais importante, usando a
voz produzida pelo artista através dos ruídos para
construir a sua própria voz.
Agosto
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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