in loco - 37o festival de gramado
Dia 2: Política de primeira, cinema de segunda
por Rodrigo de Oliveira

La Próxima Estación, de Fernando Solanas (Argentina, 2008)

Já perto do final de La Próxima Estación, depois de termos afirmados e reafirmados, em regime tautológico absoluto, todos os males provocados pela má administração das linhas ferroviárias do país, que levaram fatalmente ao seu sucateamento e privatização a preço de banana, Fernando Solanas encontra um ex-funcionário da Ferrocarriles Argentinos diante de uma imensa estação de trem abandonada. É apenas mais uma das testemunhas e vítimas da história que o filme encontra, e apenas mais uma das inúmeras cenas de completo descaso que a câmera flagra. O ex-funcionário então se vira para a câmera e, com a estação ao fundo, explica o que aquela imagem "significa" (palavra dele). O testemunho equilibra uma consciência política extrema e uma retórica da perda, digna e ao mesmo tempo melancólica, exatamente como o próprio Solanas faz em narrações ao longo de todo o filme. E exatamente como o termo de princípios que o diretor utiliza na sua relação com o objeto do documentário, um testemunho que desacredita no poder da imagem como peça de discurso natural e imediata ("estamos vendo, e isso que vemos fala sobre si") em nome da reiteração pela palavra, da explicação pormenorizada ("isso que vocês vêem só se completa com a minha presença de anunciador").

La Próxima Estación é um desses filmes que soam como peças para um programa de rádio ou um áudio-livro, a tal ponto radical em sua opção pelo verbo que, em alguns momentos, parece se ressentir e se constranger com a "obrigação" de preencher visualmente aquele discurso. Nos créditos de abertura vemos que, ao invés de um roteiro, Fernando Solanas assina aquilo que chama de "relatos", e logo saberemos do que se trata. O diretor aparece sentado à janela de um trem em movimento, vira-se para a janela com um olhar perdido, e depois se volta a um caderninho que tem nas mãos, onde anota obsessivamente idéias sobre aquilo que observa. Mais que a figura indicial do diretor, teremos a narração: voz professoral, calma, inabalável. Há uma postura política assumida de cara, que condena por igual todos os governantes argentinos dos últimos 100 anos pelo estado periclitante em que a malha ferroviária se encontra, às vezes com um pouco mais de brilho para um ditador ali ou um Carlos Menem aqui. Mesmo que desconheçamos esses detalhes da história argentina, Solanas nos prova seus pontos de maneira bastante contundente e, à maneira da esquerda mais articulada, fazendo parecer que não há mesmo segunda versão possível para a tragédia. É um pensamento que se apresenta inescapável justamente porque o discurso se constrói a partir de uma questão de pura lógica (e nisso o tom da voz de Solanas vem justamente para tirar a arrogância que esta lógica poderia aparentar - porque, afinal de contas, trata-se de um senhor de 72 anos que esteve lá, viu tudo, estudou tudo, recolheu provas materiais e humanas irrefutáveis).

Solanas opera pela causa e conseqüência, com didatismo explícito e nunca envergonhado de si (privatiza-se para melhorar o serviço, mas as empresas destroem o serviço urbano e cortam as linhas para o interior, o que faz com que cidades inteiras fiquem isoladas do resto do país, o que leva os moradores dessas cidades a buscar as metrópoles, onde o serviço ferroviário está destruído, logo...). Mais ainda, há na narração aquela maneira muito delicada de fazer-se parecer em dúvida quando na verdade se sabe exatamente o que pensar e o que se quer fazer pensar com o filme: sempre ouviremos perguntas, questionamentos da própria História com H maiúsculo ("qual dela seria a verdadeira, a da mídia ou a deste filme?"), mas todas as dúvidas são absolutamente retóricas, servem apenas para desfazer, novamente, a impressão de arrogância: como todo filme panfletário, e eis aqui um dos exemplos mais conscientes disso, é importante não se incompatibilizar com aquele a quem se deseja catequizar.

Mas aí vamos às imagens. Via de regra, Solanas buscará ex-trabalhadores das ferrovias, seus familiares, ou alguns poucos que continuam sobrevivendo da atividade nos dias de hoje, e serão sempre pessoas incrivelmente articuladas, conscientes de seu passado e da mesma lógica que o filme tenta (e consegue) nos vender. Mas, outra vez para soar menos afirmativo e mais, digamos, onisciente, o diretor se plasma nessas figuras, transfere sua voz a elas para não parecer que grita sozinho sobre uma realidade muda: "vejam, eis a voz do coletivo, sou apenas parte dela". La Próxima Estación preferirá sempre o relato à experiência da câmera dentro dos espaços que, como as pessoas, são testemunhas da história, e não haveria problema nenhum nisso se os relatos não versassem sempre sobre a mesma coisa, no mesmo tom, na mesma pegada política ressentida. É um respiro quando vemos alguém escapar da lógica e, com caráter menos programático e partidário que Solanas, lidar de fato com as emoções envolvidas nesse jogo (como na história de um chefe de estação que, mesmo depois de demitido e ter sua estação fechada, voltava todos os dias para limpá-la, arrumar os horários imaginários de partida dos trens, eventualmente até tocar o sino para anunciar uma chegada inexistente).

La Próxima Estación é uma peça de contrapropaganda, e por isso mesmo não pode se dar ao luxo do silêncio, da observação pura e não-mediada, ou mesmo à percepção de que aquela realidade às vezes se organiza de maneira quase ficcional (e veremos que em Patricios, uma das cidades isoladas pelo fim das linhas férreas, os moradores se reúnem para fazer o mesmo que o chefe de estação demitido: limpar o lugar, fazer funcionar novamente o sino, mesmo que nenhuma locomotiva passe por ali). A ficção é o terror da política, e se ela não pode fazer parte do universo da denúncia mais melancólica - os milhões abandonados à sorte pelos sucessivos governos precisam parecer mais reais que a própria vida para terem o impacto conscientizador necessário - é como ficção que Solanas observará os poucos políticos, juízes e membros do governo argentino que consegue entrevistar (em uma definição simples, os culpados pelo terror). A eles é aplicada rigorosamente a mesma mise-en-scène de corredor-de-prédio-corporativo que cansamos de ver nos filmes de Michael Moore, com Solanas à frente, buscando respostas entre os poderosos, e a câmera lhe perseguindo, sem deixar de faltar a trilha sonora à la desenho animado, como se, percebendo que o terror é, na verdade, o retrato mais fiel da ignorância política e da estupidez ideológica, não se pudesse fazer outra coisa se não ironizar essas figuras de poder naturalmente cômicas.

Tudo isso é querer tirar muito pouco do cinema para um diretor que fez La Hora De Los Hornos (1968) e A Nuvem (1998), isso só pra ficar em duas obras-primas com três décadas de distância entre si. Ao mesmo tempo, é também um direito legítimo (e muito bem realizado) de tentar intervir diretamente num cenário que o filme percebe como vazio de um pensamento eloqüente e divulgador confiável dos danos. Mas existiram aquelas estações abandonadas, aquele número imenso de vagões enferrujados e abandonados, as oficinas de reparo com trabalhos deixados pela metade, cadernos com anotações de trabalho nunca concluídas, as linhas de trem tomadas pelo mato, a sensação assustadora de cidade-fantasma em todos os povoados abandonados no interior do país - e, incrivelmente, a manutenção de um espírito de resistência encarnado pelo número de crianças que vivem ali, novas vidas lidando com velhos problemas, e é uma pena que La Próxima Estación acredite que tem muito mais a dizer do que todos esses relatos naturais que estiveram o tempo inteiro ali, ao alcance da lente.

Agosto de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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