in loco - 37o festival de gramado
“Vi coisas demais para ser inocente”
por Rodrigo de Oliveira

Nem A Grande Arte ou A Maldição de Sampaku, filmes que faziam da língua inglesa um gesto desesperado de atração de um público estrangeiro, uma vez que o nacional minguava radicalmente; nem a elevação da figura de Carla Camuratti a uma personalidade histórica fundamental para a compreensão do nosso cinema; nem ainda todos os vícios de produção criados e perpetuados pelas leis de renúncia fiscal. Se há um herdeiro legítimo de todas as implicações vindas da canetada com que Fernando Collor liquidou o cinema brasileiro assim que assumiu o poder, este herdeiro é o Festival de Gramado. Primeiro por ter o festival sido obrigado a se internacionalizar, já que não havia filmes brasileiros disponíveis para se exibir numa mostra competitiva; e, segundo (e mais importante), porque, quando começaram a existir novamente, em oferta muito pequena e invariavelmente terrível, Gramado passou a aceitar basicamente qualquer coisa. Em 2009, o festival comemora 37 anos de história e, ainda que no hall do Palácio dos Festivais possamos ver que uma parte fundamental do melhor da nossa produção passou por aqui (de Cassy Jones – O Magnífico Sedutor a Anjos do Arrabalde, para ficarmos com exemplos de épocas bastante diferentes e de realizadores idem), a verdade é que, nos últimos quase 20 anos, Gramado é o lugar onde o cinema brasileiro vem para morrer. O interessante agora é pensar nesse misto de crise de identidade e apelo à sorte e aleatoriedade que parece dominar a programação de Gramado nos últimos anos, e o que isso de fato pode dizer sobre o cinema brasileiro deste tempo.

Aliás, chegar a um festival com tanta história e tantos sentidos já embutidos nele (preconceitos inclusive) para encontrá-lo assim, perdido, esvaziado, faz pensar mesmo na idéia de um cinema brasileiro como um objeto existente como totalidade e na relação que ele estabeleceu com o espectador via festivais de cinema. Não é demais lembrar que foi Gramado, e só Gramado, que pôde assistir a Nossa Senhora do Caravaggio, último filme de Fábio Barreto antes do mastodonte de 17 milhões de reais sobre o Presidente Lula, um filme escondido e renegado desde então por ser, supostamente, ruim ao nível do absurdo (não sei, nunca vi, nunca verei, mas é o que dizem). Ou ainda que foi aqui que a equipe de Filhas do Vento ameaçou devolver todos os Kikitos recebidos quando ouviu do curador da época, Rubens Ewald Filho, que a importância em se premiar o filme estava no fato de ser uma história totalmente protagonizada por negros num estado branco e euro-descendente. Mais ainda, e já sob a gestão dos atuais curadores, José Carlos Avellar e Sérgio Sanz, foi Gramado que dividiu o prêmio de Melhor Filme uns anos depois entre Serras da Desordem e Anjos do Sol, escancarando de vez essa esquizofrenia entre a relevância histórica e a miudez do cineminha de impacto – ou, tomando a noite de ontem, entre filmes que sabem-se filmes, participantes de um momento do cinema de sua época (Memórias do Subdesenvolvimento), ou peças audiovisuais a que chamam “filme” por pura gentileza (Quase um Tango). E não importa se o filme nunca mais foi exibido (Caravaggio), se estreou em circuito reduzidíssimo (Filhas e Serras) ou se teve distribuição de uma major americana (Anjos): todos eles foram bloqueados do contato com o espectador brasileiro.

Mas claro que isso não diz respeito só a Gramado, mas a literalmente todos os festivais brasileiros de longa-metragem. Na Mostra de Tiradentes de dois anos atrás o único prêmio oficial existente na época, o de melhor filme pelo júri popular (e é um grande júri, 1.500 pessoas numa praça), foi para O Senhor do Castelo, de Marcus Villar. Se algum potencial de comunicação poderia ser suposto daí, isso não se confirmou na distribuição do filme – se o leitor não faz a menor idéia de que filme seja esse, é porque deu-se o caso que ninguém com poder e investimento o bastante quisesse que você soubesse mesmo. Brasília, Recife, Ceará, Rio, São Paulo, Paulínia: todos eles participam hoje, involuntariamente ou não, desse circuito cruel. Mas, nos casos citados, garante-se pelo menos o público do festival como aqueles poucos afortunados que puderam ver filmes que o resto do país talvez nunca veja.

Gramado, nesse sentido, é um caso particular. É o festival das celebridades, dos holofotes, onde vêem-se mais jornalistas das revistas de fofoca que críticos de cinema fazendo a cobertura, e nem a mudança de rumos da curadoria nos últimos 3 anos conseguiu tirar esse ranço do tapete vermelho disputando espaço com a tela de cinema. Ontem à noite o que se viu foi isso. Na exibição do longa brasileiro, sala com metade da lotação, se muito. Contava-se nos dedos os espectadores que não estavam ligados à equipe do filme, à estrutura do festival (são vários júris, mais jornalistas credenciados, “gente de cinema”), ou à necessidade de holofote (os atores do time B e C da Globo e Record, por exemplo, que eu não saberia identificar aqui). Do lado de fora, no frio intenso, umas 100 pessoas de câmeras fotográficas a postos, separadas do tapete vermelho por grades de ferro – e, atrás delas, os restaurantes lotados de gente. O que quer que se tenha a resolver na relação do cinema brasileiro com seu público está ali, naquela grade de ferro.

Mas que cinema brasileiro? Não resistiremos a usar Memórias do Subdesenvolvimento como metáfora para algo que absolutamente não lhe diz respeito, mas é o risco de se programar um filme assim, tão aleatoriamente, para a abertura de um festival (sobretudo um filme já tão escrito e debatido, e por isso mesmo não falarei sobre ele aqui mais do que isso: depois vê-lo mais uma vez, tenho a certeza ainda mais forte de que existiu um filminho brasileiro esquecido e incrível chamado Vida Provisória, de Maurício Gomes Leite, rodado no mesmo ano de 1968, sob o mesmo ponto de vista do burguês semi-intelectual em crise, com Paulo José no lugar de Sergio Corrieri, e que sobrevive muito melhor à inevitável datação de 40 anos depois). Mas voltando à metáfora gratuita, digo que a grande questão do filme de Alea continua sendo a percepção do socialismo cubano e toda sua operação (prática e retórica sendo aí coisas bem diferentes) como uma tentativa de criar uma idéia de coletivo a fórceps. Sobre o episódio que antecede a crise da Baía dos Porcos, onde um grupo militar do governo tortura e mata dissidentes do regime, o protagonista de Alea diz que “a verdade do grupo está no assassino”, que basta se deter na conduta do indivíduo para revelar o todo, mas que justamente é conclamando a idéia de totalidade que o torturador tenta justificar sua irresponsabilidade moral.

Agora, com apenas um filme da competição exibido (mas já conhecendo três deles de festivais anteriores), confesso não saber qual o meu papel nessa metáfora. O que sei é que, invertendo a ordem de uma frase famosa, todo filme brasileiro bom que assisti nos últimos anos é bom à sua maneira; mas todo filme miserável é miserável da mesma forma (“constrangedor” é uma palavra inescapável). Isso significa que os filmes bons não se formam em grupo e, portanto, não há verdade coletiva nenhuma ali a ser afirmada. Mas os filmes ruins, se são ruins da mesma forma, o são por absoluta ignorância de seus pares. É possível se deter no indivíduo, no filme específico, e tirar dele um diagnóstico do todo, mas é preciso sempre afirmar que este filme-indivíduo não tem a menor consciência da totalidade, daquilo que o precede e o atravessa enquanto pedaço de uma história que é maior que a sua própria. Para onde quer que se aponte, a verdade é que o cinema brasileiro contemporâneo se funda e refunda a cada novo filme, o que é divertidíssimo de testemunhar quando se trata de um Canção de Baal, mas verdadeiramente frustrante quando se fala em Quase Um Tango. Cobrir um festival de cinema no Brasil é se dispor a essa história de avanços rápidos e interrupções bruscas, experiência idêntica a do leitor-espectador aqui da Cinética. Então talvez o nosso papel – sim, porque eu também conclamarei a totalidade, caro leitor – o nosso papel nessa metáfora talvez esteja na frase de Fidel Castro que Memórias do Subdesenvolvimento traz num de seus melhores momentos: “temos que saber viver na época que nos coube viver”. Com uma dúzia de filmes pela frente, só nos resta tentar vivê-los aqui em sua integridade, a cada novo texto. E, para lembrar de um mandamento subdesenvolvimentista que me interessa mais: quem estiver de sapato não sobra. Tirem os seus aí que eu tiro os meus aqui: nós sobraremos.

Agosto de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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