ensaios Golpe
de vista A câmera e seu lugar em Um
Homem Sério, Direito de Amar e Ilha do Medo por
Fábio Andrade Há ao menos um risco
e um desafio claros quando se fala da voz narrativa no cinema. O risco, como é
comum nas trocas entre as artes, é a importação de um conceito literário para
o cinema não se dar com real suavidade. Vem daí a necessidade de lascar as pontas
de ambos para fazer com que os encaixes se complementem, e uma figura reconhecível
possa surgir do encontro. Já o desafio, ele é o próprio risco: é justamente nesse
processo de lapidação, de destruição intencional, que o pensamento pode produzir
saltos, e as artes podem buscar ar fora dos limites de seu campo. A determinação
precisa de uma voz narrativa e sua localização dentro de um filme é um desejo
problemático, pois compromete a especialidade da câmera como comentarista da ação.
Como bem comparou o crítico José Carlos Avelar, em um debate na Mostra de Tiradentes
de 2009, a câmera de cinema parece incorporar a função do coro na tragédia grega,
se assumindo como uma entidade externa que tem a autonomia de comentar criticamente
o que é encenado (a camera-stylo, de Astruc) enquanto determina a própria
encenação. Existem, porém, cenas específicas – e em certos casos até mesmo filmes
inteiros – que negam essa vocação comentarista, confinando a câmera a delimitações
do olhar claramente especificadas.
É
um tanto surpreendente, portanto, que o circuito exibidor coincida três filmes
que, de alguma maneira, tensionam essa instância enunciadora: Um Homem Sério,
de Joel e Ethan Coen (foto); Direito de Amar, de Tom Ford; e Ilha do
Medo, de Martin Scorsese. Embora não recorram sistematicamente à câmera subjetiva,
a localização precisa da “voz” narrativa se torna crucial para a experiência dos
filmes. Ainda que não sejam exatamente obras exemplares dentro da história do
cinema, é bastante revelador – dos problemas e das soluções – pensá-los por uma
mesma chave, um mesmo elemento de construção. Mais do que tratados metodológicos,
são três obras que em alguma medida suspeitam da livre transitoriedade da enunciação,
convidando o espectador a questionar (ou ao menos se atentar para) a invisibilidade
da onisciência, dando a quem diz igual importância ao que é dito.
De
fora para dentro Se
todo novo filme de Joel e Ethan Coen ressuscita a crítica pronta de que os diretores
usam suas personagens como marionetes, Um Homem Sério se coloca bem adiante
dela. Sim, são mesmo marionetes, e aqui estão seus fios – e mais: vejam logo o
titereiro que os aciona. Isso é menos uma mudança de rota, e mais um esforço de
clareza (ou, é possível argumentar, de didatismo): a encenação dos Coen nunca
esboçou qualquer vontade de se fazer espaço de reprodução de uma sensibilidade
humana nas personagens, onde a verossimilhança é tomada como uma questão de caráter.
Para eles, a cena sempre foi um campo de batalha entre as personagens e a instância
realizadora. Se há uma crise no cinema deles é justamente a das personagens diante
da aleatoriedade dos acontecimentos nos quais elas são envolvidas – acontecimentos
que, sim, foram escritos e arquitetados para anular qualquer leitura causal, ou
qualquer impressão de ordem e harmonia que não seja estética.
Pois
este novo filme dos Coen faz dessa crise sua própria motivação: o que temos é
um personagem questionando a ausência de lógica dos autores de sua própria narrativa
(para ele, Deus; para nós, os próprios diretores). “Aceite o mistério”, diz ao
protagonista o pai do estudante coreano. Joel e Ethan constroem um mundo onde
as personagens são corpos estranhos condenados ao expurgo (lembremos de um plano
de Gosto de Sangue em que a câmera precisa corrigir a rota de um travelling
para driblar um corpo caído ao chão, retomando seu caminho inicial após saltar
seu “obstáculo”), onde o traçado circular do rosto bagunça a geometria rígida
da composição em linhas retas, e os corpos se tornam empecilhos na harmonia dos
elementos visuais no quadro. Esse embate entre criador e criatura é muito comumente
visto como uma camisa de força para as personagens, mas na verdade ele reverencia
a autonomia que elas têm de colocar em risco todo o universo que foi construído
elas habitarem – ou melhor, ajudar a compor. É o cinema da escritura de
pena duríssima que, ainda assim, precisa absorver a contingência – aquilo que
deveria ficar de fora do filme, mas que força sua passagem por brechas invisíveis,
e que precisa ser domado para não dispersar o sentido original. É um cinema essencialmente
metalinguístico, no qual os diretores são sempre as personagens principais. A
questão enunciadora de Um Homem Sério é justamente a de definir esse narrador
como um outro, como uma força absolutamente externa às personagens. É expressivo
que uma das melhores sequências do filme seja justamente a que mostra o protagonista
tentando se apropriar dessa onisciência narrativa: quando sobe no telhado de sua
casa para ajustar a antena de televisão, ele pode olhar aquele mundo de cima,
do lugar privilegiado de seus criadores. A visão privilegiada é a mais banal:
vê-se apenas a vizinha nua, tomando sol no jardim. O importante, no caso, é o
privilégio em si. Mais expressivo ainda é que a cena mais problemática seja justamente
a que promove uma maior aderência da câmera aos olhos de uma personagem: a sequência
do Bar Mitzvah, com sua tentativa banal de mimetizar o calor interno à personagem
(no caso, um desfoque parcial da tela que emula a visão entorpecida de quem acabara
de fumar maconha), sensivelmente menos envolvente do que a frieza distante e clínica,
produtora de todo o humor da dupla.
Um Homem Sério
é um filme desestabilizador sempre que afirma essa autonomia criadora, onde a
única descoberta mais atordoante do que a completa falta de sentidos do mundo
é a percepção de que essa falta de sentidos tem uma autoria. O mundo é um inferno,
mas pior: ele só o é porque alguém quer que assim ele seja. O acaso, no cinema
dos Coen, se dá apenas dentro da encenação – vem de fora para dentro, é um acaso
produzido. O que resta é a falência interna da narrativa de herói, pois ao mesmo
tempo em que sua estrutura é absorvida na constante promoção de dificuldades para
as personagens, ao fim elas nunca poderão ser vencidas. Quando tudo parece solucionável,
ou ao menos contornável, pode-se sempre trazer um tornado para varrer a cidade.
Os filmes de Joel e Ethan Coen repelem na própria mise en scène, em um
rigor que nos joga sempre para fora do filme, onde a falta de sentidos diegética
se choca com controle minuncioso e absoluto na composição dessa diegese. É um
mundo construído para que a câmera o veja de fora. Dentro,
de fora Direito
de Amar, filme de estréia de Tom Ford, adota um procedimento de narração raro
e um tanto ambicioso – que tem como par contemporâneo (um pouco melhor resolvido)
o argentino Salamandra, de Pablo Aguero. Sua enunciação não é completamente
externa, como no filme dos Coen, nem assume um ponto de vista realmente estrito
– embora exista uma clara fidelidade ao seu protagonista. O que existe é uma flutuação
bastante complexa – pois metódica – cujo mais célebre equivalente literário seria
Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce. Embora o livro seja conhecido
pela maneira como Joyce controla as modulações de linguagem de cada capítulo de
acordo com a idade do seu protagonista no período (o primeiro capítulo, por exemplo,
é todo escrito para se aproximar da linguagem de uma criança), o que é realmente
surpreendente é que esse procedimento se dê mais como contaminação do que como
aderência, pois se mantém sempre na terceira pessoa. Diferente, por exemplo, de
um O Som e a Fúria – livro de Faulkner onde cada capítulo é contado por
um diferente integrante de uma família, respeitando suas particularidades de expressão
– Retrato do Artista Quando Jovem se aproxima das personagens sem nunca
abdicar da autonomia do narrador, deixando que essa terceira pessoa se aproprie
da linguagem de quem ela observa.
Cinematograficamente, Direito
de Amar faz isso no equilíbrio entre a estilização externa do plano (estamos
em um filme que quer se mostrar de época, dourando uma classe, uma questão e um
espaço muito específicos) e a pulsão pessoal que deforma os contraplanos, se irmanando
ao olhar do protagonista (os olhos, inclusive, são leitmotif constante
em todo o filme). O binômio alguém olha/algo é olhado (plano/contraplano) traz
uma sensível mudança de registro de um para o outro, onde quem olha é filmado
de forma razoavelmente naturalista (dentro dos parâmetros estilizados do filme),
mas
o objeto olhado aparece reinterpretado, erotizado pelo olhar do protagonista que
o media. É como se os filmes de Terence Davies ganhassem seu contraplano – no
caso, o do sujeito que olha. O mundo particular deixa de ser apenas olhado; ele
olha de volta. Essa intermitente imanência, porém, se revela bastante sintomática.
Após a morte de seu namorado, George (Colin Firth) decide viver um último dia
antes de se matar. Sua última caminhada pela terra é movida pela vontade de conferir
sentido àquele doce sofrimento. Afinal, George é um professor de literatura, homem
cultivado por índices primários de um desejo de sofisticação: a literatura de
Aldous Huxley, o charme easy listening de uma “Stormy Weather”, o isqueiro
de ouro que acende cigarros cor-de-rosa, a metáfora grosseira que equivale uma
relação homossexual na década de 1960 à vida em uma casa de vidro. Não
há, portanto, qualquer possibilidade dessa personagem habitar um filme dos Coen:
sua vida precisa ter sentido, e esse sentido precisa ser fechado e facilmente
decodificado em sua aparente sofisticação. Mas o que faz a operação de Retrato
do Artista Quando Jovem valiosa é justamente o ruído que existe nessa apropriação
de linguagem; o momento em que o narrador se revela crítico, seja pelo distanciamento
ou pelo próprio verniz paródico dessa apropriação. Irmanar-se a um personagem
não significa curvar-se a ele. O que havia de desconfiança da criação burguesa
em Retrato (e atinge sua plenitude em Ulisses) se rende ao vazio
celebratório do intelectual de gabinete em Direito de Amar. Sobrevive uma
dupla admiração: a de George por si mesmo, e a de Tom Ford por todo aquele universo
dourado, vinilado em luz difusa, de roupas elegantes (Tom Ford tem uma carreira
bem sucedida como estilista) e cabelos bem cortados. O
distanciamento do plano/contraplano é, em um primeiro momento, necessário para
estabelecer o trajeto alegórico como uma interpretação, uma reescritura pessoal
da personagem. Feito isso, ele se perde uma vez que percebemos o quanto Ford também
idealiza aquele universo. Isso se dá principalmente na escritura dos diálogos
– pendendo sempre ao proverbial, ao alegórico, sem qualquer fuga possível da interpretação
edificante do protagonista – mas também em uma oferta de metáforas sem qualquer
ambiguidade, onde um mergulho no mar marca o desejo de retornar ao útero, e a
morte é anunciada por uma coruja, e chega ao protagonista por um beijo. Um filme
que começa fortemente calcado na troca de olhares, aos poucos se dilui em sua
aderência. A única ironia possível está na morte que chega quando se reencontra
o prazer de viver. Até ela, porém, satisfaz o desejo do protagonista.
De
dentro para fora Ilha
do Medo, de Martin Scorsese, faz uma operação reversa. Quando entramos na
ilha, Scorsese nos instala na mente de seu protagonista. O nível dessa exclusividade
enunciadora, porém, só será revelado bem adiante – o que faz da fruição do filme
uma releitura de si mesma. Ilha do Medo existe todo em função desse recuo
de ponto de vista, que é o momento exato em que nossas expectativas são desmontadas,
e somos reapresentados ao filme que assistíamos. A câmera, aprendemos, nunca se
separou de Teddy (Leonardo DiCaprio); é seu olhar que determinara toda a encenação
– seja na maneira como um fósforo riscado ilumina magicamente toda uma cela, ou
no fragilíssimo simbolismo que traz de volta a lembrança da mulher, com golpes
delicados de superexposição e uma estilização de cena francamente banal. Há algo
de escroque nessa quebra de fidelidade, que lava suas mãos de uma encenação quase
sempre ineficaz, onde cada ilustração se justifica pela loucura de uma personagem.
Se vemos em tela uma série de recursos de dramaturgia que
beiram o primário, esse recuo empurra sua responsabilidade diegética para uma
das personagens. O filme é primário pois a auto-dramaturgia da imaginação de seu
protagonista assim o determina. Neste momento, a câmera é capaz de abandoná-lo,
de olhá-lo criticamente de uma posição externa que aparecia no filme apenas em
breves lampejos (a cena em que uma das pacientes bebe água sem um copo, por exemplo
– ainda assim, cena enigmática demais para configurar um distanciamento de fato).
O que há de realmente problemático em filmes que partem dessa necessidade de um
“golpe” no espectador, é que toda sua realização se transforma em escamoteamento
– uma vez que o diretor sabe de algo que não podemos saber antes da hora. É preciso
despistar o espectador, alimentá-lo de pistas falsas para, ao final, afirmar a
soberania da instância enunciadora em uma sequência explicativa (algo que é tão
problemático aqui quanto em um Amnésia, ou na sequência final do Psicose
original, por exemplo). Em contraponto, tudo que precisa ser explicado não
pode admitir qualquer ambiguidade – limite que tem seu exemplo mais gritante na
caminhada final pelo jardim do hospital de um enfermeiro, carregando os instrumentos
para a lobotomia quando vai buscar o protagonista. A
sobrevivência de filmes como esses depende do quanto esse escamoteamento pode
ser envolvente em si mesmo (pensemos, aqui, em O Sexto Sentido, de M. Night
Shyamalan), e do quanto o golpe explicativo ainda suporta de ambiguidade – primazias
das quais Scorsese abre mão ao se irmanar indistintamente à visão torpe e compensatória
de sua personagem, trocando os prazeres de construção do próprio filme por uma
fidelidade conceitual. São filmes difíceis de se criticar, pois todas as brechas
de sua encenação estão devidamente protegidas por seu arcabouço conceitual. Só
a crítica política é possível. Ao fim, Ilha do Medo faz um mesmo movimento
de afirmação enunciadora que Um Homem Sério (nos Coen, ponto de partida;
aqui, de chegada), mas que acaba produzindo um sentido reverso: reafirmar a autonomia
da instância enunciadora. Mas lá, onde havia transparência, agora há encobrimento.
É revelador, portanto, que a personagem principal opte, ao fim, por sustentar-se
em uma mentira, mesmo que ela a leve à “morte” – ou, como escreve Slavoj Zizek
a respeito de O Cavaleiro das Trevas, “A Mentira precisa ser elevada a
Verdade”. Foi ela, afinal, o valor determinante da lógica regente de todo o filme.
Abril
de 2010
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