in loco - cobertura dos festivais

Go Go Tales (idem), de Abel Ferrara (Itália, 2007)
por Eduardo Valente

Agridoce funeral

Com Go Go Tales, Abel Ferrara realiza um filme que, ao mesmo tempo que soa bastante leve, revisita e reposiciona todo um cinema que ele vem construindo há 20 anos – cinema de uma profunda angústia e insanidade, que não faz a menor questão de se esconder por trás da comédia que surge na tela. Trata-se da história daquela que pode vir a ser a última noite de um go go club nova iorquino (todo filmado em Cinecittá – o que é parte inegável do charme e do discurso do filme), onde um quase possuído (como vários protagonistas de Ferrara) Willem Dafoe briga para se desvencilhar das pressões de todos os lados (a dona do imóvel que ameaça expulsá-lo, as strippers que ameaçam uma greve, seu irmão rico que paga as contas mas que fechar o lugar), enquanto aposta tudo (literalmente) numa última cartada – um jogo de loteria.

O clube se chama Ruby’s Paradise, e mais de uma vez somos lembrados que o que está em jogo no filme é nada menos do que a queda do paraíso. Embora Ferrara deseje, mais que tudo, homenagear os clubes em que passou muito tempo na juventude (e toda sua selva/universo), o filme é também um duro lamento sobre um tempo que passa – e há mais do que uma agulhada em produtores de Hollywood (e a maneira como seriam escolhidos os roteiros dos novos filmes a serem realizados), jovens trabalhadores do mercado financeiro, etc (“people love to see other people fail”, diz um personagem lá pelas tantas).

Ferrara nos dá mais um filme que, ao mesmo tempo que nos faz pensar constantemente em cinema (onde, embora a referência direta assumida seja mesmo o Bookmaker Chinês de Cassavetes, também lembramos muito, em mais de um sentido, do último Robert Altman, A Última Noite), nos coloca de frente com o ser humano, sem precisar para isso se “render” a um realismo-naturalista – aliás, muito pelo contrário. Assim como no filme de Altman, esta mistura de celebração e funeral é construída por Ferrara com uma câmera que parece planar quase irrealmente pelo espaço interno do clube, muito mais captando pedaços de ação daquela noite do que construindo de fato uma narrativa no sentido clássico (embora, quando menos esperarmos, no final perceberemos que a narrativa foi de fato precisamente construída).

Menos do que aonde as cenas desembocarão, a satisfação está em fruir os planos, em pegar pequenas pérolas de trabalho dos atores, e acompanhar momentos de uma beleza crua e quase patética. Neste sentido, nenhum momento é mais forte no filme do que o “show de talentos” do fim da noite, seqüência para a qual o filme todo converge com uma força radicalíssima. A idéia mesmo da “mudança de registro” que acontece no clube como um todo naquele momento (contra a qual a personagem de Sylvia Miles – fenomenal – se revolta, afirmando que aquilo “não faz o menor sentido”) nos deixa claro que, se o filme já não trabalhava no registro do naturalismo, naquele momento haverá um mergulho ainda mais profundo no mundo do sonho/pesadelo. Quando vemos um leão de chácara truculento recitando Shakespeare, uma go go girl apresentando um número de balé clássico (e aqui vale chamar a atenção para o fato de que esta figura é central no filme – tanto que aparece logo nos primeiros planos), ou um Matthew Modine afetadíssimo cantando (pessimamente) uma cantoneta com um pianinho e um cachorrinho penteado, vemos ali a chave de Go Go Tales: filme que nos maravilha e deprime ao mesmo tempo.

Maio-Outubro de 2007


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta