in loco - cobertura dos festivais

Deus Homem Cachorro (Liu lang shen gao ren),
de Singing Chen (Taiwan, 2007)
por Fábio Andrade

Com medo do escuro

Logo nos primeiros minutos de Deus Homem Cachorro, um estranho plongé mostra uma estrada em curva. A cena é um tanto insólita, pois a estrada é recortada em forte luminosidade, contrastando com a escuridão que a cerca. Ao final do filme, nessa mesma estrada, o jovem Hsien (interpretado por Johnathan Chang – o garotinho de As Coisas Simples da Vida) acende o caminhão de deuses-neon de Yellow Bull (Jack Kao), que havia saído para procurar gasolina. “Tenho medo do escuro”, diz o garoto. A questão que une essas duas cenas se aplica, com efeito, a todo o filme: há, em Deus Homem Cachorro, um excesso de claridade reinante. Não como efeito narrativo e estético – como em O Nevoeiro, de Frank Darabont, ou como as noites claras da primeira metade de Mal dos Trópicos, de Apichatpong Weerasethakul – mas como temor diante da possibilidade de esconder qualquer coisa do espectador. Não há espaço para a meia-luz, quanto menos para a escuridão completa.

Singing Chen faz um típico filme-panorama, onde os destinos de pessoas que não se conhecem serão amarrados parcamente pelo desague de eventos-crise. Suas personagens trazem, no corpo, marcas de um discurso: uma modelo de mãos em depressão pós-parto, casada com um bem sucedido executivo; uma jovem lutadora de artes-marciais; um revendedor/restaurador de imagens religiosas que perdeu uma perna; uma garota que vende seu corpo para ser estampado em peças de publicidade; um garoto que não pára de comer; um casal de aborígenes que tenta superar o alcoolismo e recuperar a confiança dos filhos.

Não há, portanto, ponto sem nó: se vemos como a geladeira do jovem casal é simetricamente organizada, é para que isso contraste com a desordem interna do relacionamento. Se o restaurador de estátuas tem que trocar a prótese de sua perna, é para pôr em crise sua mentalidade de conservação com a vida prática. Há, em Deus Homem Cachorro, um desejo visível de clarear todos os cantos da narrativa para o espectador, para que o vai-e-vem entre as estórias individuais não o abandone no limbo entre uma e outra. Mais surpreendente, porém, é que, ao fim, entende-se muito pouca coisa sobre um filme que deseja tão abertamente ser compreendido. Isso porque, se o parentesco voluntário com o trabalho de Alejandro Gonzáles Iñárritu é bastante claro, Singing Chen não tem, sequer, o domínio narrativo necessário para fazer seu filme funcionar. Antes mesmo de questionarmos suas escolhas, somos barrados pela inabilidade de sua própria realização. Para onde vai o raciocínio sobre o corpo tão rapidamente estabelecido como ponto de partida pela montagem? O que fazer com tantos personagens, tantas sub-tramas, tantos elementos jogados a esmo em uma narrativa que deveria se bastar?

É inevitável, portanto, a sensação de que o melhor caminho para Singing Chen seria deixar-se levar por suas pulsões visuais: além de um belo plano de um rosto flutuando no reflexo do céu e de alguns saltos de registro com as estátuas dos deuses, há, no filme, um mal ajambrado flerte com a linguagem publicitária que, se melhor explorado, um subtexto visual e discursivo possivelmente interessante. Como subproduto de um cinema que já não sabe bem por onde pisa, Deus Homem Cachorro é um quebra-cabeça que, apesar de prometer formar, ao fim, uma imagem plena e reconhecível, parece composto por peças que nunca se encaixam de fato.

Setembro de 2008

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