ensaios
George Harrison - Living in the Material World,
de Martin Scorsese (EUA, 2011)

por Fábio Andrade

George HarrisonUm homem em conflito

Há um desafio crítico nos documentários de Scorsese, e este George Harrison – Living in the Material World não é exceção. Pois enquanto seus filmes de ficção são marcados por uma tensão constante entre a fidelidade a uma tradição (Scorsese é um cineasta de gênero) e a inquietação que obriga a romper com ela (Scorsese é, de fato, um cineasta de gênero) – o que, nos erros e nos acertos, gera filmes de inescapável estridência – boa parte de seus documentários segue um formato bastante discreto, quase jornalístico, com a construção de um discurso único a partir de entrevistas e imagens de arquivo. As vozes são dobradas pelo cineasta na construção de um retrato que responde apenas ao seu traço, mesmo que o traço a princípio se pareça com o de tantos outros. Era o caso de suas duas viagens cinematográficas, pelos cinemas americano e italiano, também de No Direction Home, o filme sobre Bob Dylan, e é novamente o caso neste retrato de George Harrison.

Mas Scorsese tem, também, um talento especial para pegar formas e operações bastante desgastadas, não muito distantes do cânone didático da escola inglesa da década de 30, e dar-lhes um peso e um sentido diferentes. Por mais que as talking heads e um trabalho por vezes bastante determinista de montagem estejam ali – os cortes precisamente convencionais das frases de efeito para os clipes de imagens com música, por exemplo – nos documentários de Scorsese impera a sensação de que algo de misteriosamente forte se dá na simplicidade de procedimentos que o uso teria convencionado como ferramentas meramente informativas. É como se, pelas frestas da convenção, algo de forte e novo se impusesse, como se um ethos maior e anterior conseguisse restaurar a limpidez de operações que já pareciam caducadas pela facilidade de seus efeitos. Nada é exatamente fácil em George Harrison – Living in the Material World.

George HarrisonEmbora a estrutura dos filmes não guarde surpresas, a assinatura tremida de Scorsese permanece ali – espremida entre as linhas rígidas da caligrafia tradicional e o impulso de ultrapassá-las – muito por conta da escolha de seus personagens. Como Bob Dylan – que aparece novamente aqui, em uma participação no concerto para Bangladesh e em gravações dos Travelling Wilburys – George Harrison, junto dos Beatles ou não, é também um artista que se colocava de corpo inteiro nesse centro de tensões entre o domínio da convenção e a necessidade de extrapolá-la, de testar seus limites. Era, como diz Eric Clapton em um dos primeiros depoimentos do filme, um guitarrista que criava algo absolutamente novo pela combinação de gêneros e estilos naquele momento já devidamente cristalizados, e até então não vistos como necessariamente complementares. E, também, era um homem tentando reconciliar espírito e matéria, integridade e fragmentação, igualmente sacro e pagão, como o coroinha que cresce tão apegado a Deus quanto às possibilidades de uma viagem de ácido ou cocaína.

George Harrison vem, portanto, como a encarnação dos conflitos que marcam a obra e a vida do próprio Scorsese, e que chegam ao filme pela sua presença. Mas mais do que simplesmente usá-lo como representação do igual, há em Living in the Material World um cuidado enorme em ultrapassar essa primeira empatia para, pela memória (visual, sonora ou textual, no caso das cartas e entrevistas), reconstituir pouco a O Cavalo de Turimpouco uma presença de alteridade que permanecerá inatingível, distante. Não à toa, o filme começa com um plano que será reapresentado ao final, em que George Harrison flerta com a câmera por trás de uma parede de tulipas. Entre o primeiro e o quase último plano, não passamos a conhecê-lo melhor, ou tivemos evidências suficientes para tornar a imagem menos enigmática. Ao contrário, ele partirá com a mesma insolência e integridade com que chegou. A primeira imagem é logo perturbada por uma voz fora de quadro, que começa a depositar sobre aquela aparição suas lembranças, impressões e racionalizações. Ao final, o plano voltará em silêncio, como se o filme tivesse lhe conquistado o direito tardio ao descanso, ao privilégio de poder permanecer apenas como um homem em seu canteiro de flores. O que estabelece essa diferença, na verdade, são as três horas e meia da sensação mais que vivaz de sua presença. E presentificar o mistério é privilégio acessível apenas ao melhor cinema. 

Outubro de 2011

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