Garoto
Cósmico, de Alê Abreu (Brasil, 2007) por
Paulo Santos Lima Sob
a tenda de um circo
Na maior parte do tempo, os
filmes de animação são valorizados na medida em que reproduzem “realisticamente”
o mundo “real”. Esse “real”, no caso, é a própria gramática aplicada pelo cinema
para construir sua diegese a partir do mundo em que vivemos. Assim, é comum que
se arregale os olhos para os desenhos que conseguem simular os procedimentos concretos
do exercício cinematográfico, como Ratatouille, Os Incríveis e Procurando
Nemo (exemplos extraordinários, topo de linha, com reproduções estilísticas
complexas, de decupagem do espaço a movimentos de câmera). Essa é uma estética
contemporânea dos desenhos, seguida ou não pelos cineastas do mundo de hoje, e
que conta sobre conteúdos já bastante comentados outrora: amizade, lealdade, perseverança,
reorganização do caos. Nesse cenário, Garoto Cósmico
desponta como uma obra bastante interessante, na medida em que o diretor Alê Abreu
opta por um traço retrô. O Yellow Submarine dos Beatles, dirigido por George
Dunning, é uma proximidade – ainda que o longa de Abreu seja bem mais pé no chão,
comportado, longe da deliciosa e iluminada viagem ácida desse filme de 1968. Assim,
Garoto Cósmico pisa no terreno do infanto-juvenil dos anos 70, quando a
TV Globo, por exemplo, juntava ingredientes da fantasia monteirolobatiana de Vila
Sésamo reformatados num simulacro interessantíssimo do telejornalismo com o programa
Globinho, e ainda adotava o lúdico da mímica genial de Juarez Machado no
Fantástico. E é com Machado que o grande personagem do filme, Giramundos, assemelha-se
fisicamente. Com
o circo servindo como referência vertebral aqui, está claro que Alê Abreu traz
à tela parte de sua experiência pessoal, e, claro, um universo dos anos 70 (década
em que o virtual ainda era uma ficção científica) que lhe diz respeito. A história
passa-se em 2973, quando todos são guiados por uma espécie de inteligentsia,
um deus-máquina onipresente que conduz todas as ações humanas, numa lógica infernal
(e maquinal) em que a produtividade é o objetivo supremo. Numa galáxia cujos planetas
dividem maciçamente funções sob nomenclatura disfarçada – planeta da 3ª idade
(os fora do mercado de trabalho), planeta dos robôs (os produtivos), planeta das
crianças (o condicionamento) -, a humanidade vive em estado zumbi. Não há como
dissociar esse estado de coisas de THX 1138, primeiro longa de George Lucas
(dos anos 70, aliás), e Alê Abreu faz um ótimo trabalho visual, em azul e branco
e reproduzindo uma dinâmica de linha de montagem opressiva (notavelmente acentuada
para um filme infantil). Nesse
ambiente, há três crianças que, buscando ganhar mais pontos (ganha-se pontuação
através da produtividade – o que, no caso dos pirralhinhos, é seguir a pauta dada
pelo Big Brother e estudar toda uma sorte de matérias tão pouco reflexíveis quanto
inúteis), acabam saindo daquele sistema. Param num planeta que parece uma laranja,
meio semelhante à Terra, solar, colorido, meio Beatles, e lá conhecem Giramundos
(voz de Raul Cortez), dono de um circo que apresentará à trinca um novo estar
no mundo: mais sensorial, reflexivo, lúdico, pulsante. O céu torna-se um lugar
de visibilidade, com nuvens tomando formas diversas. O trem da trupe circense,
que é uma negação ao maquinário automatizado dos outros planetas dominados pelo
vilão, tem vagões temáticos ultra-criativos, bichinhos ganham novos papéis, tudo
muito divertido. Tudo isso nos é mostrado com um desenho
de traço mais “duro”, antigão, sem texturas tridimensionais ou cores esfumaçadas,
o que é bem interessante. Faltou, nesse momento, uma erupção dessa experiência
dos personagens, com mais delírios, mais desdobramentos do repertório abrigado
pelo circo Giramundos. Fazer o universo lúdico transcender como imagem, como simulação
do imaginário infantil, como cinema. Mas seria injusto não ver o filme pelo que
ele apresenta ao longo de sua projeção: um grande exercício que enreda o melhor
das TVs educativas, os mais recentes Glub Glub e Castelo Rá-Tim-Bum, com as colinhas,
purpurinas e tal dos anos 70, a franqueza com a qual ele se aproxima de um repertório
que anda escasseando, o do circo (nos créditos, é dito “um espetáculo de Alê Abreu”).
Mas, que fique claro: não é por essa “função” que Garoto Cósmico é um belo
desenho – um filme não tem de ter uma função, mas simplesmente ser um filme, e
a função fica para o uso que cada um quiser fazer do que assistiu na sala. É que
Garoto Cósmico constrói um universo mais próprio, “meta-cinematográfico”,
mais mundo e sua história recente, mas despretensioso, leve. Ou seja: mais duro
(no traço), mas sem perder a ternura. Outubro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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