ensaios
O Garoto da Bicicleta (Le Gamin au Vélo),
de Jean-Pierre e Luc Dardenne (Bélgica/Fraça/Itália, 2011)

por Filipe Furtado

Um corpo protesta

Sobre o cinema de Jean-Pierre e Luc Dardenne duas preposições iniciais:
- Eles são sobretudo diretores de filmes de ação.
- Apesar de trabalharem fora de um registro mais óbvio de gênero, seus filmes cultuam, muito mais do que outro cinema corrente, uma idéia de narrativa clássica - principalmente quando pensamos o conceito de mise en scène como arte de modular o drama.

George HarrisonSão preposições que ajudam a nos situarmos dentro deste O Garoto da Bicicleta, que a principio se apresenta como um dos filmes mais simples doa irmãos belgas. O que primeiro impressiona é justamente a economia e precisão da sua narrativa: cada ação leva naturalmente à ação seguinte, sem que um plano seja desperdiçado, não por uma simples questão de eficiência narrativa, mas por uma crença do que o que está na tela é tudo aquilo que é necessário revelar sobre a existência daquele garoto. 

Quando associamos esta idéia de precisão e narrativa clássica no cinema contemporâneo, o que primeiro vem à mente são justamente filmes brutalmente eficientes, e pouco mais do que isso, mas o que é notável aqui é justamente como O Garoto da Bicicleta compreende o verdadeiro valor de uma narrativa clara e compacta. Pensemos em como, em poucos planos, o filme nos apresenta a figura do jovem traficante e o desenvolve dentro deste mundo. É um personagem com função de instigador muito clara na trajetória do garoto, mas ele existe dentro do filme para além desta função: é fácil nas suas poucas cenas imaginar todo um filme alternativo em torno dele, sem que com isso no filme não permaneça somente o essencialmente necessário na sua figura. É uma qualidade que encontramos, por exemplo, na grande maioria dos filmes de Howard Hawks, mas que dificilmente se acha nos filmes de predominância narrativa recentes.

George HarrisonComo Eduardo Valente bem descreveu na nossa cobertura de Cannes, trata-se de um filme sobre “um corpo revoltado com o mundo”. No caso, o garoto Cyril que, após ser abandonado pelo pai (depois de concluir que, não tendo como cuidar do menino, o melhor seria cortar toda relação com ele), permanece em constante movimento contra todos que se colocam em seu caminho. Cyril é tão desagradável quanto é possível imaginar uma personagem na sua situação, sua postura sempre agressiva e raramente deixando a guarda baixar, à exceção justamente do par de cenas com o pai nas quais ele se apresenta como uma criança de 11 anos muito mais típica. A câmera dos Dardenne revela Cyril como um projétil vermelho num movimento constante, pronto para atacar o outro no menor sinal de que as coisas se desviem ao mínimo dos seus desejos, quase como uma paródia da intransigência pré-adolescente transferida para uma situação na qual cada ação, cada desejo do personagem, carrega consigo um peso e risco muito maior.

Um pouco como em A Criança, O Garoto da Bicicleta aos poucos se revela um thriller moral. Se naquele filme a questão era responsabilidade, aqui ela é a conseqüência. Não se pode ser um corpo em disparada agindo como rolo compressor impunemente para sempre. Esta transformação é conduzida pelos Dardenne com a mesma precisão e cuidado com que tocam tudo em seu cinema - e, a princípio, nem percebemos que o filme nos prepara ao inserir aos poucos momentos de explosão seca de violência. As seqüências de ação pura do filme vêm sempre acompanhadas destas explosões que, se desprovidas de conseqüências físicas maiores, carregam em si não só a surpresa, mas o sentimento constante de que cada personagem pode perdoá-la, mas não esquecê-la. Que o filme faça isso sem jamais retirar e Cyril da posição de corpo que protesta só prova o domínio de O Garoto da Bicicleta sobre seu drama.

Outubro de 2011

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