ensaios
O Garoto da Bicicleta (Le Gamin au Vélo),
de Jean-Pierre e Luc Dardenne (Bélgica/Fraça/Itália, 2011)
por
Filipe Furtado
Um corpo protesta
Sobre o cinema de Jean-Pierre e Luc Dardenne duas preposições iniciais:
- Eles são sobretudo diretores de filmes de ação.
- Apesar de trabalharem fora de um registro mais óbvio
de gênero, seus filmes cultuam, muito mais do que outro
cinema corrente, uma idéia de narrativa clássica
- principalmente quando pensamos o conceito de mise en scène
como arte de modular o drama.
São
preposições que ajudam a nos situarmos dentro deste
O Garoto da Bicicleta, que a principio se apresenta como
um dos filmes mais simples doa irmãos belgas. O que primeiro
impressiona é justamente a economia e precisão da
sua narrativa: cada ação leva naturalmente à
ação seguinte, sem que um plano seja desperdiçado,
não por uma simples questão de eficiência
narrativa, mas por uma crença do que o que está
na tela é tudo aquilo que é necessário revelar
sobre a existência daquele garoto.
Quando associamos esta idéia de precisão e narrativa
clássica no cinema contemporâneo, o que primeiro
vem à mente são justamente filmes brutalmente eficientes,
e pouco mais do que isso, mas o que é notável aqui
é justamente como O Garoto da Bicicleta compreende
o verdadeiro valor de uma narrativa clara e compacta. Pensemos
em como, em poucos planos, o filme nos apresenta a figura do jovem
traficante e o desenvolve dentro deste mundo. É um personagem
com função de instigador muito clara na trajetória
do garoto, mas ele existe dentro do filme para além desta
função: é fácil nas suas poucas cenas
imaginar todo um filme alternativo em torno dele, sem que com
isso no filme não permaneça somente o essencialmente
necessário na sua figura. É uma qualidade que
encontramos, por exemplo, na grande maioria dos filmes de Howard
Hawks, mas que dificilmente se acha nos filmes de predominância
narrativa recentes.
Como
Eduardo Valente bem descreveu na nossa cobertura de Cannes, trata-se
de um filme sobre “um corpo revoltado com o mundo”.
No caso, o garoto Cyril que, após ser abandonado pelo pai
(depois de concluir que, não tendo como cuidar do menino,
o melhor seria cortar toda relação com ele), permanece
em constante movimento contra todos que se colocam em seu caminho.
Cyril é tão desagradável quanto é
possível imaginar uma personagem na sua situação,
sua postura sempre agressiva e raramente deixando a guarda baixar,
à exceção justamente do par de cenas com
o pai nas quais ele se apresenta como uma criança de 11
anos muito mais típica. A câmera dos Dardenne revela
Cyril como um projétil vermelho num movimento constante,
pronto para atacar o outro no menor sinal de que as coisas se
desviem ao mínimo dos seus desejos, quase como uma paródia
da intransigência pré-adolescente transferida para
uma situação na qual cada ação, cada
desejo do personagem, carrega consigo um peso e risco muito maior.
Um pouco como em A Criança, O Garoto da Bicicleta
aos poucos se revela um thriller moral. Se naquele filme
a questão era responsabilidade, aqui ela é a conseqüência.
Não se pode ser um corpo em disparada agindo como rolo
compressor impunemente para sempre. Esta transformação
é conduzida pelos Dardenne com a mesma precisão
e cuidado com que tocam tudo em seu cinema - e, a princípio,
nem percebemos que o filme nos prepara ao inserir aos poucos momentos
de explosão seca de violência. As seqüências
de ação pura do filme vêm sempre acompanhadas
destas explosões que, se desprovidas de conseqüências
físicas maiores, carregam em si não só a
surpresa, mas o sentimento constante de que cada personagem pode
perdoá-la, mas não esquecê-la. Que o filme
faça isso sem jamais retirar e Cyril da posição
de corpo que protesta só prova o domínio de O
Garoto da Bicicleta sobre seu drama.
Outubro de 2011
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