ensaios
Gambiarras de Cao
por Cezar Migliorin
Neste
encontro que tivemos, Cao Guimarães me falou de um de seus
trabalhos fotográficos. Eu acabara de chegar à, sua casa depois
de ter tido uma certa dificuldade em entrar no prédio. A porta
elétrica do prédio estava com fios à mostra, presos com um esparadrapo,
insistindo em manter o mau contato. Quando entrei, Cao me falou
de um trabalho que só agora vim a conhecer mas que durante muito
tempo o imaginei. Não sei se inspirado na porta de seu prédio,
o trabalho se chama Gambiarra. “Fotografo as gambiarras, essas
coisas feitas para resolver um problema de maneira não convencional”.
As gambiarras são soluções temporárias que acabam se tornando
definitivas. São soluções feitas sem o material apropriado, sem
as ferramentas corretas. As gambiarras são reveladoras de uma
precariedade e de uma criatividade.
Desde que Cao me falou deste trabalho passei a
ver gambiarras por toda parte. Um mundo provisório, esperando
que alguém cuidadoso e caprichoso viesse colocar o parafuso certo
no lugar, o cano que tapa o fio, a tinta certa no remendo, a cola
no lugar do arame, etc. Este trabalho de Cao acabou me conectando
com esta faceta dos objetos remendados, com uma certa poesia que
há na falta de tempo para a perfeição, na falta de dinheiro para
a ferramenta apropriada ou na simples preguiça. Porque temos algo
melhor a fazer do que esconder os fios do cabo da Net.
A gambiarra é em si um objeto estético. Normalmente
ela é fruto de um deslocamento, de uma utilização diferente para
um objeto: sabão para fechar o buraco deixado pelo prego, apoio
de copo para equilibrar a mesa. Gosto de pensar o momento em que
vamos fazer uma gambiarra; olhamos o mundo dando uma dimensão
para os objetos que nada tem a ver com suas realidades funcionais.
O sabão serve para fechar o buraco porque é branco e mole, não
porque lava, etc. Essa borda dos objetos é valorizada na gambiarra.
A gambiarra é uma necessidade que dá vida à contingência dos objetos.
Uma gambiarra é uma forma de respeitar os objetos.
Respeito vem do latin, respectus. Formada pelo radical
“specere” quer dizer olhar e de “re”, expressando
uma volta, uma segunda vez. Temos então para formar a palavra
respeito um olhar que se repete, um olhar que não se contenta
com uma só olhada.
Lembrei-me do trabalho do Cao na retrospectiva
Flowers and Questions dos suíços Fischli e Weiss, atualmente
na Tate Modern, em Londres. Um dos trabalhos mais conhecidos da
dupla é o filme The way things go. Neste filme, durante
30 minutos, uma seqüência de gambiarras sem função faz mover um
grande dispositivo de ações e reações que constroem o filme. Uma
bola que faz um pneu rolar que bate em uma lata que derrama álcool
que acende um fogo que queima uma corda, que. O filme é encantador.
O puro prazer da inutilidade. Me lembrei deste trabalho do Cao
também na recente exposição de Godard, no Centre George Pompidou,
uma exposição feita de dezenas de Gambiarras, algumas high-techs.
Uma exposição de remendos de imagens e memórias.
Mas as Gambiarras de Cao são do terceiro mundo,
precisam segurar o pára-choque, levantar o monitor, sintonizar
a TV, iluminar a casa, empurrar o carrinho com o isopor cheio
de cervejas no show dos Rolling Stones. Lembro-me deste trabalho
com uma certa tristeza também. Talvez porque tenha encontrado
gambiarras demais ligadas à pobreza. Papelão nos telhados, aquecimento
nas saídas de ar do metrô. Triste conexão entre pobreza e criatividade.
Quando não resta mais nada; vê-se a criatividade.
No caso das Gambiarras, a idéia já é em si parte
conceitual fundamental, nos permitindo esse olhar que se distancia
da funcionalidade das coisas para ver o mundo que se faz presente
em cada objeto que nos cerca. Isso faz com que as fotos sejam
desnecessárias? Certamente que não. Uma idéia ganha sentido se
materializando. Me permiti, desde que Cao falou-me sobre este
trabalho, construir a minha materialização da idéia do artista,
uma materialização que está no esparadrapo que segura a haste
do óculos que me permite ver este texto que agora escrevo.
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