in loco - cobertura dos festivais
Fuga sem Destino, de Afonso Brazza (Brasil, 2006) por
Francis Vogner dos Reis A
anti-teoria do filme de ação
Diferente de outros
cineastas presentes na Mostra e que sempre despertam algum interesse (como Eduardo
Coutinho, Murilo Salles), o cineasta (e bombeiro) brasiliense Afonso Brazza possui
particularidades um tanto quanto incômodas no que se refere ao imaginário do cinema
nacional. Ele é o estereótipo potencializado da fotografia ruim, do som ruim,
do filme nacional dublado, em suma, do tosco, e para alguns, do ultrajante. Até
por isso, é uma grata surpresa a exibição de Fuga sem Destino na Mostra
Internacional de Cinema, em meio a uma seleção que, em sua maioria, exibe filmes
brasileiros “corretos”, até mesmo caretas. Não importa se o filme de Brazza é
bom ou ruim: é estimulante, e isso não se pode dizer de muitos filmes brasileiros
recentes. Antes que se fale das características que lhe
valeram a pecha de trash ou cult, convém compreender a estranheza
muitas vezes desconcertante que emerge de seus filmes, e em específico de Fuga
sem Destino – último longa de Brazza que, falecido em 2003, deixou a conclusão
do filme para o amigo e também cineasta Pedro Lacerda. Existe em Fuga sem Destino
uma brutalidade que rompe com qualquer regra narrativa. Ao mesmo tempo em que
ignora o uso da decupagem clássica para as cenas mais básicas que pedem alguma
precisão dramática (diálogos, paralelismos), ele apela para ela de modo a imprimir
um ritmo às suas seqüências de ação. Qual não é o estranhamento ao vermos o modo
como ele arriscava construir uma narrativa com ações paralelas? O espanto e a
gargalhada incômoda ao testemunhar uma sucessão de cortes que emendam as cenas?
Temos em um momento o protagonista Trovão (personagem interpretado
por Brazza) atirando em bandidos. Corte. O amigo de Trovão, apelidado de careca,
segura o filho do herói dentro do barco, o garoto briga com ele (na verdade, só
se debatem) sem motivo aparente. Corte. Primeiríssimo plano de um homem de olhar
observador. Corte. Gângsters à beira da piscina. Corte. Personagem da juíza observando
(não se sabe ao certo o quê) de dentro de um carro. Corte. Mulher dançando de
biquíni em um outro espaço e a comitiva de Frank Aguiar se aproximando da mansão
do vilão. Nas
primeiras cenas de Fuga sem Destino, temos uma série de situações e signos
próprios de um filme de ação. Frota de viaturas policiais em movimento, helicópteros,
bandidos fugindo da polícia e imagens do centro de Brasília com prédios de vidro
cortando o horizonte. A extravagância desse prólogo lembra um pouco alguns filmes
de ação oriental, que gostam de ostentar o moderno espaço urbano e sua extravagância
na caracterização dos personagens e na organização da ação. A situação se prolonga
até que os bandidos sejam pegos. Nesse momento entra uma voz feminina dando a
sentença de prisão. Uma voz que ecoa na cena e não possui ligação alguma com a
ação propriamente dita. Nessa mesma toada absurda, na parte final de Fuga sem
Destino aparece uma garota de BMW que ajuda Trovão – de uma cena para outra
já não é mais uma BMW, ela está ao volante de um jipe. Não
sabemos quem é, porque está ali e como chegou, mas explicar isso não interessa
ao diretor. Interessa que ela seja bonita, que dirija um carrão e que atire bem.
Assim como o romance improvisado do herói com Claudete Joubert no desfecho, que
está ali porque Brazza acredita ser necessário a um filme de ação, não porque
seja um elemento dramaticamente coerente. É difícil descrever o impacto dessa
composição celerada que parece não se pautar por um princípio de continuidade,
mas de disposição dos elementos que o cineasta achava importante de se ter em
uma história. É nisso que se reconhece o “estilo” (se assim
podemos dizer) do cineasta: organizar os elementos do seu filme não segundo um
cânone narrativo e diegético, mas segundo a sua vontade ou de acordo como elas
se organizavam na sua cabeça, sem levar em conta o efeito disso na percepção do
espectador. Segundo consta, Brazza filmava seus filmes na ordem do roteiro, tanto
que o copião já vinha naturalmente semi-editado. Se achava obrigatório jogar uma
narração em cima de uma cena para explicá-la, jogava sem cerimônia; se o cineasta
via como necessário trocar a música que Frank Aguiar canta em uma seqüência –
mesmo que os lábios do personagem mostrem que ele canta uma música diferente da
que ouvimos - , troca sem nenhum constrangimento; em um simples diálogo de plano
e contra-plano ele busca os ângulos mais inusitados e a quebra de eixo mais grosseira
– mas para Brazza isso não era uma questão. O que era questão para ele é que o
filme existisse, o resto passa. E essa era a fórmula para fazer um péssimo filme
forte e vivo. A filosofia de cinema de Brazza é tão explícita
que faz com que qualquer análise mais “séria” de seu filme pareça um tanto quanto
conservadora, antiquada e preconceituosa. Fuga sem Destino torna as ferramentas
de um crítico um pouco impotentes, não porque estimula uma solidariedade cínica,
mas porque seu lema parece ser “fazer desesperadamente um filme possível”. Seria
um desrespeito ao cinema e à seriedade do artista permitir que adotássemos calhordamente
a mal compreendida sentença pauloemiliana (a de que o “o pior filme brasileiro
nos interessa mais do que o melhor estrangeiro”) para simplesmente tratar o tosco
como pérola, fazer da natureza de um filme de Afonso Brazza veículo de má consciência.
Ou seja, uma estratégia tão paternalista quanto mesquinha: abafa-se a discussão
por trás de um discurso que é mais de complacência e menos de compreensão do filme
em si. Outubro de 2007
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