olho no olho
Frodon, o cinema e a crítica
por Cléber Eduardo
Onde acaba o cinema e começa o audiovisual? Que
alterações a nebulosidade dessa fronteira gerou na crítica? Os
críticos seriam, em média, piores hoje? Ou a cultura cinematográfica,
também na média, estaria mais rica atualmente?
Essas dúvidas estiveram entre as questões centrais
de um encontro de Jean Michel Frodon, editor da Cahiers du
Cinéma, com uma platéia de jornalistas e críticos no espaço
Reserva Cultural, em São Paulo, durante a manhã de uma terça-feira
de fim de agosto. Na mesa, a acompanhá-lo, Amir Labaki, diretor
do festival É Tudo Verdade, e Maria Dora Mourão, professora da
ECA-USP. Dora foi a primeira a levantar a questão sobre os limites
movediços do cinema. A pergunta-resposta de André Bazin (O Que
é o Cinema?) pediria uma atualização, constata-se por sua preocupação.
E essas mudanças do cinema, com os fluxos de referência multi-direcionais,
com a influência de mão dupla entre o ideal do cinema-arte e a
prática do cinema-comércio, teriam piorado os críticos? Dora acredita
que piorou sim. No Brasil, pelo menos. “A crítica está passando
no Brasil por uma grande crise. Talvez isso tenha a ver com as
mudanças que estão ocorrendo no cinema”. Amir Labaki discorda:
“A crítica hoje é melhor, na média, que era 30 anos atrás, ao
menos se levarmos em conta a internet. Mas hoje a crítica está
com menor poder de fogo”.
Essa passou a ser o eixo sobre o qual os participantes
da mesa falaram: cinema contaminado por outras linguagens, crítica
contaminada pelo cinema. Ou mais ou menos isso. Mas o cinema não
é impuro por ontologia, como afirmou André Bazin? Se sim, a crítica,
afirma Frodon, é mais impura. No entanto, ao defender o cinema
do restante do audiovisual (sim, uma defesa), vislumbra-se, nesse
mundo audiovisual vulgar, uma visão romântica, uma busca de transcendência,
do sagrado da arte. Uma pureza na impureza. E o crítico, essa
figura tão impura, mais impura que o próprio cinema, também seria,
de certa forma, um olhar sagrado, sábio, capaz de separar a arte
superior da manifestação mundana. Tal postura tem coerência com
a missão editorial de Frodon, depois de ter sido colocado na direção
dos Cahiers pela direção do Le Monde, jornal hoje proprietário
da revista. Há uma diferença entre cinema e audiovisual, cabendo
ao crítico delimitar essas fronteiras, acha Frodon. Mas em vez
de tirar o cinema do mundo para colocá-lo em um púlpito não seria
politicamente mais fértil encarar o mundo onde habita o cinema?
“O cinema tem concorrentes muito poderosos hoje.
Ele ainda existe, mas é minoritário, está passando por transformações
enormes, em grande parte por conta dos avanços tecnológicos no
som. O cinema é uma maneira de estabelecer uma relação entre imagens
e a coletividade, entre imagens e imaginário, uma relação que
nos permite dizer que algo é ou não cinema. Cahiers du Cinéma
continua a se chamar caderno de cinema, e não caderno de imagens
ou do audiovisual, porque acreditamos que o cinema continua a
existir e a ter características próprias. E acho que cada vez
que dizemos que tudo é a mesma coisa, imagem em movimento com
sons que as acompanham, isso é sinal de uma derrota.” Questionado
por mim sobre a pertinência de fechar os olhos para a imagem de
forma mais ampla, enquanto campo de análise nos Cahiers, ele deu
a seguinte resposta: “Ninguém seria louco de negar a existência
de todas as outras modalidades audiovisuais, mas a presença das
imagens é esmagadora e às vezes não queremos ser esmagados, preferindo
assumir certo distanciamento em relação a isso”.
Essa mesma atitude, de estabelecer uma elite e
o restante, Frodon teve com a internet. Lamentou a migração de
críticos de impressos para revistas virtuais e vinculou esse movimento
a uma certa covardia e preguiça de se resistir nas redações. “Não
é porque a internet dá possibilidade a qualquer um de escrever
sobre cinema que todos podem ser considerados. Não é porque todos
tinham lápis que todos podiam ser escritores. Acho lamentável
a ida de críticos de jornal e revista para a internet. Às vezes
falta coragem e preguiça para se continuar na imprensa. Quando
algumas pessoas resistem às pressões, quando permanecem, resistindo,
isso é significativo”. Talvez ele leve em conta em sua afirmação
apenas ou principalmente o contexto francês, bastante singular
no campo da crítica. Mas, independentemente disso, há nessa reação
uma eleição dos impressos como espaço nobre da discussão cinematográfica,
ignorando que, em alguns países, o melhor da reflexão sobre cinema
está em revistas eletrônicas – não porque seus críticos sejam
melhores, mas porque têm liberdade para exercitar seus interesses
de forma mais selvagem, menos formatada pela lógica jornalística
e pautada pela agenda das distribuidoras. Não são em jornais e
revistas que, no Brasil, têm-se lido os diagnósticos estéticos
e políticos, seja exclusivos à produção nacional, sejam os referentes
ao cenário mais amplo.
Talvez possa haver na defesa/proteção da pureza
do cinema impuro e da nobreza da crítica impressa um apego a um
circunstância histórica de outro momento. O cinema está, sim,
mais complexo – e pede ferramentas mais complexas para se relacionar
criticamente com ele. E a crítica não é mais exclusividade de
jornalistas. É sua prática amadora que tem lhe dado pulmão.
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