ensaios
Era uma vez a América
Foreign Parts, de Verena Pavel e J.P. Sniadecki
por Fábio Andrade
Todo trabalhador das palavras é assombrado
por palavras de outrem, por idéias lidas em páginas
estrangeiras que, com o uso e a convivência diária,
aos poucos se tornam inevitáveias às suas. Um trecho
que me atormenta, e vira e mexe se coloca em meus textos, como
se fosse impossível verbalizar certas impressões
sem passar por ele, vem das “Seis Propostas para o Próximo
Milênio”, de Ítalo Calvino. É um trecho
que salta com facilidade das folhas impressas de papel para a
tela do cinema: "A partir do momento em que um objeto comparece
numa descrição, podemos dizer que ele se carrega
de uma força especial, torna-se como o pólo de um
campo magnético, o nó de uma rede de correlações
invisíveis. O simbolismo de um objeto pode ser mais ou
menos visível, mas existe sempre. Podemos dizer que numa
narrativa um objeto é sempre um objeto mágico".
Lançado
em 2010, Foreign Parts, de Verena Pavel e J.P. Sniadecki,
é um documentário filmado em 2008 e 2009 em Willets
Point, triângulo de aço no coração
do Queens, em Nova York, onde funcionam (ainda) cerca de 250 lojas
e oficinas automotivas, que empregam cerca de 2000 pessoas. Com
raras exceções, a mão de obra é essencialmente
estrangeira – primordialmente hispânica, embora o
filme ressalte a presença da comunidade judaica hassídica
no local. Aos diretores, sobra a convicção wisemaniana
de que, uma fez escolhido o lugar certo, basta uma câmera
atenta e a ação do tempo para que ele se configure
como espaço alegórico, e os objetos se tornem objetos
mágicos. Em Foreign Parts, esse duplo registro
permitido pelas imagens do filme aparece logo no título,
igualmente referente às partes estrangeiras dos automóveis
e ao próprio status de Willets Point dentro de
Nova York e na vida das pessoas que ali trabalham. Tudo em Foreign
Parts aparece imantado por essa dupla condição
de espaço concreto e inevitável microcosmo. Ao mesmo
tempo em que um relato sobre os pássaros que migram todo
Verão para o estacionamento, e reproduzem ali antes de
partirem novamente ganha contornos absolutamente alegóricos,
vemos e ouvimos os pássaros cortando
a imagem e solicitando o relato.
Fosse
um universo escrito, criado, concebido, o Willets Point de Foreign
Parts seria uma criação bretchiana.
Mas a cada avião que corta o fora de campo rumo ao aeroporto
de La Guardia sentimos a concretude da alegoria imposta pelo cotidiano,
com o barulho das peças de metal arrastadas pelo chão,
os cacos dos vidros estilhaçados dos carros empilhados,
e a reluzente arena dos Mets, brilhando ao fundo como uma faceta
nem sempre alcançável deste mesmo sonho americano.
Se toda alegoria produz a virtualização do significado,
não há olhos capazes de duvidar da concretude de
um ferro velho, com suas poças de chuva e esgoto.
Uma alegoria, porém, não é uma figura de
linguagem dotada de fascínio ou luz própria. Como
toda ferramenta retórica, ela serve a um discurso, mesmo
que de maneira não literal. A retórica é
uma estratégia de convencimento, mas ao que pode (ou deve)
persuadir a arte? Todo trabalhador das palavras é assombrado
por palavras de outrem. Em A Política da Arte,
Jacques Rancière fala de “Arturo Ui”, bastião
da arte crítica de Bertolt Bretch. Fala da maneira
como as conversas sobre couve-flor das personagens servem como
alegoria ao nazismo, ao mesmo tempo em que permanecem como conversas
de couve-flor. “Se os assuntos de couve-flor versificados
têm a ver com a política, não é porque
eles revelariam um segredo ignorado, mas porque eles fazem, a
sua maneira, o que faz a política, porque eles embaralham
a repartição estabelecida entre a poesia e a prosa,
entre a língua dos assuntos públicos e a dos assuntos
domésticos, entre os lugares, as funções
e as competências”.
Willets
Point é a clareira alegórica por reproduzir, cotidianamente,
o misto entre privado e público, entre trabalho e vida
que marca a trajetória dos estrangeiros que ali foram parar.
Daí a austeridade não permitir perder de vista a
figura humana em meio às tentações da geometria
construtivista dos carros empilhados... daí a atenção
acentuada dada ao casal que mora em um carro estacionado por ali,
a uma festa de aniversário de uma mulher errante querida
por todos que ali trabalham, e de um churrasco que termine com
um pedaço de carne caído sobre uma chave de boca,
no chão da oficina. Há, inclusive, um momento flagrante
da consciência dos diretores nesse gesto: quando um dos
personagens volta ao ferro velho e reencontra sua mulher após
um tempo na cadeia, o diretor cumprimenta o homem em sua chegada
e pergunta se pode filmar, restaurando ao evento uma privacidade
que a promiscuidade entre vida e trabalho terminou por apagar.
Se
há uma política possível em Foreign Parts
– ou em Doméstica, de Gabriel Mascaro, em
I’m Not There, de Todd Haynes, em Hotel Mekong,
de Apichatpong Weerasethakul, em Moscou, de Eduardo Coutinho
– ela está justamente na reconfiguração
do sensível pela exposição cirúrgica
das contradições do cotidiano. Os aviões
que cortam o céu são igualmente a promessa de fuga
e de chegada, o que traz a expectativa de uma nova vida e promete
– com os mil dólares do casal que mora em um dos
carros – a possibilidade de saída. Aos homens e mulheres
que ali calharam de viver – e vivem como vivem todas pessoas,
no lugar que lhes calhou viver - Verena Pavel e J.P. Sniadecki
dedicam a atenção da câmera, e o cuidado na
montagem de recompor a integridade da experiência –
não apenas a alegoria que inevitavelmente brota de qualquer
pedaço de chão onde um tripé de câmera
é colocado, mas também a espera pelo marido que
saiu da prisão, a alegria breve de uma canção
no rádio a celebrar as ruas da infância em Porto
Rico, o alívio de um trago na mesa de trabalho ou uma conversa
farsesca sobre um blunt de freebase. Se,
para os imigrantes que foram parar em Willets Point, a América
é o local de trabalho, o filme lhes dá o direito
de chamá-la de lar. Não é questão
de adoçar o veneno, mas de reconhecer os vetores em trabalho
que tornam tudo - açúcar e arsênico - menos
discerníveis. A política possível
em Foreign Parts se dá em um pequeno grande feito
(a rigor, não mais que um dever adquirido sempre que se
aponta a câmera para um lugar qualquer): reafirmar a complexidade
do mundo em cerca de oitenta minutos.
Novembro de 2012
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