Fluidos, de Alexandre Carvalho (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente

Cinema de si mesmo

Falávamos outro dia sobre filmes-dispositivo, e, no caso de A Falta que Nos Move, dos filmes-processo. Eis que nos chega agora Fluidos, que junta os dois de maneira indistinguível. O grande problema que se apresenta para o crítico ao ver este filme é exatamente qual a questão que está em jogo para ser analisada. Porque, ao mesmo tempo em que há o filme que se nos dá ver na tela, existe tudo o que levou a que ele exista, e que no fundo parece ser o que realmente importa – mas isso é algo que estritamente não pede nenhuma crítica, no máximo um debate com os realizadores depois da sessão (o que não houve no Festival do Rio) ou a exibição de cenas do próprio processo (o que, claro, houve, com um pequeno extrato de making of passando com os créditos finais).

Explicando melhor: a versão de Fluidos que chega aos cinemas é um corte feito a partir de um processo de “cinema ao vivo”, explicado no site do projeto (com direito a manifesto nos primeiros posts). Percebemos, lendo o material, que toda a idéia do projeto gira em torno da possibilidade de se fazer um filme enquanto a platéia o assiste num cinema. Algo que é vendido como extremamente inovador (“o primeiro longa-metragem ao vivo”), mas que no fundo nos remete curiosamente aos primórdios da televisão, e mesmo ao teatro (menos por ser ao vivo, e mais por colocar os atores sempre em função da duração de cada cena, feitas todas para uma só câmera), para não falar das outras experiências com o chamado “live cinema”. O que mudaria aqui? O espaço de exibição (o cinema), a duração do que se exibe (um longa), a mobilidade das câmeras (na mão, na rua), talvez. Mas, no fundo mesmo, muito pouco que justifique que se trate como algo tão inovador assim a idéia de produzir ficção ao vivo. 

Como vemos no blog, no entanto, a chamada “mídia” teve sua atenção atraída pelo projeto, o que no fundo parece ser o que importa: a partir desta cobertura, desta atenção atraída, o projeto se justifica por si mesmo. Ele foi duplamente bem vendido: conseguiu o seu financiamento e a atenção da mídia na sua realização, baseado sempre no seu processo. E, sem dúvida, pode ter criado criou uma experiência interessante (embora, reafirmamos, não exatamente “inovadora”) nos dias de sua exibição/realização. Mas eis que sobra agora um filme, que é exibido em salas como as do Festival do Rio numa condição igual à de qualquer outro, e a pergunta volta: o que temos a perguntar criticamente a este filme? Faz sentido mesmo dialogar com ele ou estamos fadados sempre a falar só do processo? Assistir apenas ao objeto “morto” (oposto do vivo, já que o material escrito do filme fala sempre de “cinema vivo”) não é ter contato com um simulacro sem muito sentido?

Sem dúvida haveria vários focos de interesse (principalmente os bons atores e a maneira como dão vida a algumas das histórias) e problematização (os grilhões que o formato impõe e quase nunca são os melhores para desenvolver de fato esta narrativa, desde a relação da câmera com o mundo ficcional até a duração das cenas, etc) no material que vimos na tela. Mas ambos esbarram neste muro que é o filme-processo, onde nenhuma pergunta parece realmente válida de ser feita ao mundo ficcional que vimos na tela, porque ele nunca foi o mais importante objeto em jogo. Quem voltou pra casa depois de ver o filme, seja no ao vivo ou na versão eternizada, vai carregar mais lembranças do que presenciou como processo de realização, das condições particulares do trabalho da equipe e dos atores, e muito menos dos personagens e suas histórias, da visão de mundo particular que o filme poderia criar a partir da colocação destes em cena (mise-en-scène).

Não que seja impossível o ao vivo ou a arte performática gerarem algo potente por si (ora, isso é mais que óbvio já que estão aí séculos de teatro, música, artes plásticas – e mesmo a TV). Mas a questão que se impõe para o cinema, pelo menos como pensado neste filme, é: será que isso realmente é o meio mais potente para o objeto (o tal filme), por fugaz que seja, que se quer criar? Nos parece que não, pelo menos enquanto neste meio (ao contrário do que acontece nos outros citados) a idéia de “novidade” (que parece bem mais justa aqui que a palavra inovação) for o que motivar os esforços, precisando se tornar em si mesmo a performance. Porque, convenhamos: nenhuma peça de teatro, concerto musical ou mesmo programa de TV fica chamando a atenção para o fato de estar sendo feito ao vivo como algo de muito relevante. É um dado a mais, apenas, e pronto: nos concentremos agora no que é feito a partir deste ao vivo. No caso de Fluidos e deste seu cinema-processo, ainda estamos na fase regressiva: onde todas as partes querem, acima de tudo, chamar a atenção para como fazem, mais do que para aquilo que fazem. E aí, não há necessidade de crítica, afinal.

Outubro de 2009

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