in loco
Os filmes de Santa Maria da Feira 2007
por Paulo Santos Lima

Apesar da falta de mesas de debate, a estrutura do 11º Festival de Cinema Luso-Brasileiro foi bastante certeira na idéia de criar uma dinâmica que possibilitava ver os filmes e comentá-los a posteriori, centrando as exibições sempre à noite e apenas ocasionalmente no final da tarde. Grosso modo, a extração foi positiva, na medida em que se conheceu um bocado da produção recente portuguesa, três retrospectivas interessantes (do cinema de animação do brasileiro Victor Hugo Borges, do particularíssimo trabalho umbilical-familiar do mineiro Carlos Magno e dos exercícios lingüísticos do português Hugo Vieira da Silva). E, claro, a sessão “Somos Todos Filhos da Terra” – com filmes não realizados em 35mm.

Não é menos necessário citar ainda as exibições especiais de Jogo de Cena, do clássico Limite (em película estalando de linda) e de O Cheiro do Ralo – filme bastante complicado, mas bastante sintoma de um certo cinema “urbano” paulista que agrada a um punhado de gente. A peça-chave do filme, Paula Braun, esteve presente para a apresentação do longa ao público (ela que, juntamente a outros brasileiros, entre atrizes, críticos e realizadores como Kleber Mendonça Filho, compôs o júri desta 11ª edição). As escolhas do festival cumpriram múltiplas utilidades, uma vez que, por exemplo, Djin Sganzerla (que, com o crítico Ruy Gardnier e três jurados portugueses, compunha o júri de curtas) esteve presente também no lançamento do livro “Rogério Sganzerla”, coletânea de entrevistas com o cineasta organizada pela pesquisadora Roberta Canuto para a série Encontros.

Portugal

A cinematografia lusitana, pelo menos como pôde ser vista neste festival, demonstra um certo embaraço em utilizar uma linguagem mais atual. Não por falta de conhecimento, se pensarmos que alguns dos realizadores estão mais sintonizados com um cinema, digamos, de ponta – mesmo que com resultados finais ainda bastante travados, como o longa documental pessoal Balaou, de Gonçalo Tocha, que defende o mar como espaço de vida contra a (suposta) anestesia da terra firme, o que o faz pescar alguns planos bastante interessantes, como o da câmera dentro do barco olhando o mar pela escotilha (uma metáfora do cinema – se óbvia, ao menos bastante eficaz no movimento das aguas). Ou, mais anda, China, China, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata (foto ao lado), que parece um xerox do cinema oriental, com o corpo da chinesinha imigrante em Portugal aporrinhada pelo marido e filho; um tédio mostrado com imagens ágeis, cenografia multicor e algo do lúdico que acerta mais quando flerta com aquele mesmo tom leve da Nouvelle Vague (meio entre Vardas, Démy e tal). Já outro curta, Europa 2007, de Pedro Caldas, lembra Promised Land, de Amos Gitai: fazendo denúncia à prostituição e judiações contra as mulheres imigrantes, seguindo uma narrativa mais recente, com planos escuros, luz “natural” e, em alguns momentos, mantendo-se fiel à extensão da experiência da protagonista. Talvez a retrospectiva Hugo Vieira da Silva seja a melhor coisa dos selecionados portugueses, cujos trabalhos são experimentais ao nível da sessão “Somos Todos Filhos da Terra” e ilustrativos de um fazer cinema bastante desconhecido dos brasileiros.

Diante dessa nossa ignorância sobre o que de fato é o exercício cinematográfico do lado de lá do oceano, os longas exibidos em competição são essenciais. Tanto A Outra Margem, de Luis Filipe Rocha, quanto O Capacete Dourado, de Jorge Cramez, comentam temas nem tão inéditos, mas um tanto “urgentes” e ainda nas rodas. Mas o fazem com uma caligrafia bastante quadrada, com decupagem abundante em erros mas bastante rígida, com plano-contracampo simétricos como um pingue-pongue, com planos gerais pulando para os mais próximos, movimentos de câmera meio desajeitados e, mais crucial, uma dramaturgia meio mofada. Para ilustrar, é só pensarmos no Babenco dos anos 80, ou o mesmo Babenco de Carandiru. Assim, no caso do primeiro filme, temos a história do transformista que, enviuvado após o suicídio de seu parceiro, retorna à terra natal para reencontrar irmã, sobrinho doente mental, pai, a ex-namorada que ele obviamente deixou para trás, etc. As atuações (inclusive da câmera em cena) lembram uma má novela das 8, e existe um moralismo quase tenebroso, além dos shows musicais. Parece ser uma tentativa de cinema popular – mas será que a educação ocular do público do país aceita esse tipo de cinema?

O Capacete Dourado é mais interessante, ao menos pelo modo como Jorge Cramez tenta ilustrar o universo da juventude meio transviada. O objeto do título é de um rebelde motoqueiro que se apaixona pela filha do seu diretor da escola. É um filme meio sem acontecimentos, mas, mesmo desajeitados, os momentos quando ele e ela assistem aos fogos no céu e seus colegas dançam numa (comportadíssima) festinha adolescente mostram um esforço digno de, mesmo com a cartilha de décadas atrás, dialogar com temas em que poucos cineastas saem-se bem (Gus Van Sant, no caso).

Brasil

Com longas já bem conhecidos por nós, com destaque para o soberbo Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, e os ótimos Mutum, de Sandra Kogut, e A Via Láctea, de Lina Chamie (todos comentados nesta Cinética), e um punhado de outros bastante irregulares, devidamente formalistas mas imperfeitos no resultado desse formalismo, como Deserto Feliz, de Paulo Caldas, e A Casa de Alice, de Chico Teixeira (idem), foi a grade de curtas que trouxe a maior novidade/destaque do time brasileiro.

Alphaville 2007 D.C., de Paulinho Caruso, foi uma unanimidade, inclusive figurando entre os mais queridos do público (público este composto sobremaneira por gente de cinema). É um filme que dialoga com um certo tipo de cinema e tempo histórico (o moderno, dos anos 60 – diretamente Godard e afortunadamente Sganzerla), mas com conteúdo completamente inteirado com a atualidade (inclusive numa militância irreverente, ácida, divertida, meio Godard também – o dos anos 60, mas também próxima dos curtas Veja e Ouça e Aranhas Tropicais de André Francioli). Um filme de colagem cujo resultado da costura ultrapassa a mera citação, ganhando uma voz inédita, olhando não para trás, mas ao redor (das coisas, do mundo e da linguagem visual contemporânea). É um tipo de cinema que merece toda a atenção, uma vez que a tendência de hoje no Brasil é a atenção à “qualidade e virtuosismo” técnicos (lê-se, câmera e decupagem dinâmicas).

Talvez mais impressionante que o curta de Caruso seja Trópico das Cabras, de Fernando Coimbra. É, aliás, um trabalho encaixado nas linhas acima, ou seja, bem filmado e contemporâneo, flertando com o cinema de Reygadas, captando os poros da ótima Larissa Salgado, que é uma peça de carne no filme – o que é valioso como ouro num filme que reúne experiências humanas entre espaços, fluxos psicológicos por meio de uma oralidade potente, redemoinho que engolfa qualquer sentido mais linear, mas que diz isso tudo por meio de imagens totais, concretas. Talvez o melhor curta apresentado na singela Santa Maria da Feira.

Outra experiência interessante, e também afinada com um cinema de evidências cujo fim é o concreto dos corpos, foi De Resto, de Daniel Chaia, cineasta bem simpático ao cinema autoral de terror que, aqui, consegue passar em estrada ribeirinha, indo a algo mais psicológico. Nessa chave, com o corpo servindo ao drama do mundo, está o ótimo Um Ramo, de Juliana Rojas e Marco Dutra (foto ao lado), obra bastante redonda, onde cada diálogo e imagem cumprem uma função narrativa bem acertada. Vale aqui, inclusive, compará-lo ao longa A Casa de Alice – este também com imagens bem afiadas, alguns momentos extraordinários, mas preso demais à trama, o que não seria ruim caso o final não viesse pela facilidade do “em aberto”. Um Ramo, nisso, é bastante mais feliz. Décimo Segundo também responde a uma preocupação de seu cineasta, Leonardo Lacca, em confiar no tempo dos planos, em como a duração pode emular e produzir sensações. Temos um homem chegando à casa de uma conhecida (ou ex-namorada, sabe-se lá), e, do elevador no qual câmera e bagagem sobem andar por andar, em plano sem corte, ao momento dele na cozinha da moça, um belo exercício de captura do instante.

Dos curtas, digamos, mais “pop”, o de Esmir Filho, Saliva, tem alguns problemas que também são suas virtudes. Se o universo expressivo da intimidade sensorial da menina que dá o seu primeiro beijo é um tanto carregado demais (algo meio publicidade com instalação), a crença e firmamento nesta proposta merecem todo o respeito – além do diretor Esmir Filho ter, pelo menos, uma seqüência soberba em sua carreira de curtas-metragens (a da danceteria, em Alguma Coisa Assim). Pugile, de Danilo Solferini, é um trabalho com forte apelo popular, um drama sobre irmãos num universo materialmente puído: paulistanos (e palmeirenses), um sendo lutador de telecatch e o outro deficiente mental. E o que o filme faz? Não conduz nossa apreensão por meio da trilha sonora (o que é tão comum quanto desastroso neste tipo de filme) – e, tirando alguns problemas de roteiro e a limpezinha aqui e lá de situações (como a morte da mãe), o pingue-pongue de olhares (sobretudo os olhos de Diogo Junqueira) é algo a ser retido. Passo, animação de Alê Abreu, e o “rigorosamente oriental” Tori (que bem poderia ser uma animação – sem qualquer demérito nessa minha afirmação), são típicos e bons exercícios que o formato curto permite.

Em contraposição a esse diálogo direto com os descolados ou públicos mais sentimentais, está Outono, de Pablo Lobato, experiência de coisificação dos elementos em cena, como num cinema de arquitetura onde banheiro, corpos, azulejos, água, tudo compõe um tableau. Um filme potente, e que bem poderia estar na sessão “Somos Todos Filhos da Terra”, sobre a qual falo a seguir.

Somos Todos Filhos da Terra

Eis o espaço onde títulos brasileiros e portugueses estiveram juntos e em certa paridade, e que merecem, aqui, ser tratados num mesmo trecho. O nome dessa sessão me disse muito: diante de um modelo em que a concatenação lógica-aristotélica dos acontecimentos predomina no cinema mundial, como ficam os filmes que trabalham com outras gramáticas? São obras extra-cinema, experimentos poéticos ou coisas do tipo? E, sendo rodados (e, em alguns casos) exibidos em vídeo, ou em algo paralelo à película, não são cinema? Claro que não, e a seleção nem foi, por assim dizer, tão radical.

Tivemos, por exemplo, o belo exercício em super-8 do português Paulo Abreu, Friendly Fire (que lembra um pouco o inventivo Banco de Sangue, do brasileiro Luiz Montes), estilização com crianças portando mãos como armas, mais um êxito de efeito do que do dispositivo, ou do cinema. Na linha de utilizações mais tumultuadas (e, por assim, mais interessantes), está Lost in Art – Looking for Wittgenstein, dos portugueses Luis Alves de Matos e João Louro, experiência cujo título já deixa clara a pretensão da dupla mas que resulta interessante, uma boa massagem para os nossos olhos.

Mais leve, meio piada gráfica de HQ com narração em off brincando com uma situação cotidiana, o brasileiro O Paradoxo da Espera do Ônibus, de Christian Caselli, provou-se mais “esperto” que propriamente virtuoso, mas também confortável aos sentidos, uma digna vinheta, digamos. Na linha leve-humorística, melhor é Novela Vaga, metalingüagem dos cariocas Dado Amaral e Beto Valente sobre como fazer cinema, e que lembra um bocado o filme coletivo, também carioca, Conceição – Autor Bom É Autor Morto.

Com pitadas de humor ácido, o ótimo Gustavo Jahn, brasileiro que mora no exterior e que em breve estará ao lado de Tiago Mata Machado para rodar um filme no Brasil, assina um dos melhores títulos da seleção, Éternau. Lembra um pouco o filme de Paulinho Caruso, mais ainda os de André Francioli, mas a proposta é ainda mais radical, gráfica, como numa colagem insana de elementos fundindo trama de espionagem, sci-fi, imaginário televisivo e trasmutações corporais (o próprio cineasta e sua pequena, Melissa Dullius, atuam e “recitam” o filme).

A Secreta Obscenidade de Cada Dia, de Marina Weis, trava diálogos com as artes plásticas, algo meio de cena teatral, e, longe de indigno, talvez não faça grande vulto diante de, por exemplo, um trabalho como Material Bruto, de Ricardo Alves Jr. (foto ao lado) – devidamente comentado por Eduardo Valente, o que me poupa o dificil trabalho de comentar com palavras o que é a operação que este diretor mineiro faz entre música popular, a arquitetura dos hospícios interagindo com a planície dos corpos humanos. Um material bruto, imagens pegando a casca do mundo e observando suas mutações – ou seja, tempo e espaço vistos com uma câmera muito bem controlada, ou olhos muito bem guiados. Fiquemos com os comentários de Valente, enfim.

* * *

Seria bastante desonesto falar da evidente superioridade dos filmes brasileiros sobre os portugueses sem entendermos o contexto de produção de cada um. Portugal tem pelo menos dois dos maiores gênios do cinema recente, e o que facilita certos filmes e tumultua a existência de outros exige uma pesquisa aprofundada da realidade cultural lusitana, que, hoje, está sofrendo um declínio nos incentivos estatais. Seria bastante cego também não avistarmos o baixo público que boa parte dos filmes brasileiros vêm tendo, ou mesmo o transtorno que um filme do calibre de Serras da Desordem teve para ter certa sua data de lançamento em nossos cinemas. Assim sendo, Portugal e Brasil são bastante primos, e o Festival de Santa Maria da Feira só confirma que um diálogo mais próximo pode fecundar propostas inéditas ou inusitadas entre esses cinemas tão distintos em suas imagens e tão parecidos em sua condição.

Dezembro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


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