in loco - XII Festival Internacional
de Cinema e Vídeo Ambiental
Uma crise no cinema documental
por Rafael Castanheira Parrode
Festival que celebra a reflexão ambiental através
do cinema, o FICA expõe com clareza a dificuldade da curadoria
em encontrar filmes que consigam aliar o discurso ambiental e
o fílmico, em busca de uma sensibilidade etérea
de cinema - coisa que poucos filmes atingiram com alguma plenitude.
Soma-se a isso suas intermináveis e cansativas maratonas,
que se estendiam por cerca de 8 horas (entre a competição
e a Mostra ABD - que exibia os filmes goianos, que são
discutidos num outro texto),
submetiam a uma tarefa ingrata os espectadores - e também,
é claro, os próprios filmes, que de uma maneira
ou outra acabavam sendo vistos com maior desgaste ao longo das
sessões.
A questão que a princípio passa pela indagação
sobre o que seria, afinal, esse tal "cinema ambiental",
acaba desaguando numa reflexão que está no cerne
da questão acerca dos novos caminhos propostos pelo documentário
contemporâneo. A temática ambiental defendida pelo
Festival acaba nos revelando uma dificuldade de articulação
e de uma necessidade de reinvenção e reprocessamento
de mecanismos e ideias que parecem estagnados dentro de uma noção
ultrapassada de se pensar o cinema documental, principalmente
levando-se em conta a saturação e a banalização
que as novas mídias e a internet provocaram em torno da
imagem.
A Mostra competitiva, em seus altos e baixos, parece trazer à
tona uma crise do documentário moderno, expondo uma necessidade
de reinvenção de alguns artifícios que foram
se tornando lugar comum no cinema contemporâneo. Os longas
selecionados são de longe as experiências mais frustrantes da
mostra. São documentários em sua forma mais clássica,
que propõem uma relação direta com
o real, que se rendem a um registro factual, que servem muito
mais como documento de arquivo do que como peça de cinema.
Em boa parte desses filmes não se vê estabelecida
nenhuma relação visual mais profunda que busque
romper com uma certa ideologia dominante e iconoclasta da superficialidade
do discurso imagético. Há, num festival temático
como esse, a necessidade da discussão urgente, da relevância
de certos temas, e por vezes o cinema parece ficar em segundo
plano dentro dessa proposta pedagógica e perecível
de reflexão.
São os médias e curta-metragens os que mais se arriscam
no sentido de desafiar, de romper com os paradigmas criados em
torno do cinema documental contemporâneo. É
um desafio que passa por toda uma apreensão de como o documentário
foi construído como gênero ao longo da história,
desde Flaherty e Rouch, até cineastas que investigam os
limites do gênero atualmente como Eduardo Coutinho e Andrea
Tonacci, mas também Frederick Wiseman, Abbas Kiarostami
ou Jia Zhang-ke.
Em contraposição ao modelo clássico anglo-saxão
de documentário já devidamente desgastado
ao longo do tempo, desse cinema obcecado pelo tema acima de tudo,
começa-se a perceber um esgotamento também desse
dito documentário ficcional, herança do cinema-verité
e da verdade provocada roucheana - hoje já devidamente
estabelecido como formatação do olhar - que começa
a demonstrar sinais de um conformismo estético, uma saturação
de certos procedimentos cinematográficos que revelam
uma estagnação de um discurso já devidamente
esmiuçado por críticos e teóricos, e que
sente agora uma necessidade de sublimação, de reestruturação,
de readaptação diante das mudanças pelas
quais o cinema tem passado ao longo dos anos.
Ao mesmo tempo, outros filmes acabam se revelando verdadeiros
sopros de originalidade, de reinvenção e redescobrimento
de uma linguagem que transmuta ao longo do tempo e vai sendo moldada
de acordo com a sensibilidade de cada olhar. Esse choque provocado
pelas diversas formas, bem sucedidas ou não, de se enxergar
o cinema documental moderno - uma crise que parece situada entre
duas escolas teóricas de cinema já muito estabelecidas
- acaba revelando algumas belíssimas obras do mais puro
cinema (Bicicletas de Nhanderu, O Desejo da Vila Changhu e
Alimentar o Animal). Cinema impregnado de vida,
acima de tudo, que vai além da tentativa fugaz de emulação
de um discurso meramente teorizante ou conteudista. Essa lição
de sublimação desse cinema que se estabelece num
espaço fronteiriço entre a vida e a arte faz pensar,
e muito, numa das muitas lições proclamadas pelo
grande Andrea Tonacci ao ministrar o curso "O Cinema das
Margens" durante o festival: "A margem é o limite
entre a imagem e a minha vida". Não é outro
o limite do verdadeiro cinema.
A banalização do tema e o desgaste da imagem
O Preço da Semente (El
Precio de la Semilla), de Miguel Vassy (Argentina/Brasil,
2009)
Pó: o Grande Processo do Amianto (Polvere),
de Niccolò Bruna e Andrea Prandstraller (Itália/Bélgica/Suíça,
2011)
Por tratarem de questões essenciais dentro de um discurso
ambientalista como o da soja transgênica e o do amianto,
ambos os documentários optam por uma abordagem pedagógica,
onde o discurso é traduzido basicamente através
de entrevistas de pessoas que estão envolvidas diretamente
com o impacto do uso indiscriminado desses dois produtos.
O
italiano Pó: o Grande Processo do Amianto, a princípio
parece buscar uma abordagem cujo ponto de vista se estabelece
dentro do tribunal italiano onde é julgado o polêmico
processo contra a Eternit, que provocou a morte de centenas de
pessoas por contaminação por amianto. Na sequência
inicial, alguns amigos preparam um jantar enquanto conversam e
tomam vinho. O assunto, como não poderia deixar de ser,
vinha de lembranças da época em que trabalhavam
na Eternit. A partir daí, o filme se estabelecerá
basicamente como um filme de tribunal, onde aquelas pessoas que
jantavam e falavam de uma maneira até descontraída
sobre suas experiência dentro da Eternit são agora
testemunhas de um dos maiores processos da história italiana.
Esse interesse pelos bastidores e meandros do julgamento polêmico
do caso, entretanto, vai aos poucos dando lugar a uma tentativa
discutível de estruturar o discurso contra o uso do amianto
através de um exploração emocional dos dramas
dos envolvidos na tragédia da Eternit. O filme então
passará a acompanhar uma mulher em suas sessões
de quimioterapia (até o anuncio de sua morte por um letreiro
perto do final), uma senhora que perdeu toda a família
por doenças causadas pela contaminação com
o amianto entre outras. É uma estratégia de manipulação
que retira do filme a sua capacidade de reflexão, que vai
muito além da questão específica do amianto,
passando por questões históricas e políticas
para as quais o filme fecha os olhos com o intuito apenas de convencer
o espectador por meio da exploração dos dramas pessoais.
O
Preço da Semente segue, nesse mesmo sentido e sem
propor qualquer desafio, essa tradição do cinema-direto
anglo saxão, cujo princípio se baseia na captura
das imagens e sua disposição como espiãs
do cotidiano, sem que supostamente haja qualquer interferência
externa em seu material. É inegável a força
do discurso que o filme emprega. Entretanto, ele não é
suficiente para chamar a atenção para os problemas
que o filme aponta. Ele engessa e condensa toda uma gama de reflexões
que são intrínsecas ao tema abordado pelo filme,
mas que passam longe na construção de um olhar que
está além da questão da soja, passando também
pela questão sociológica e humana, histórica,
política e cultural da Argentina e - por que não?
- de toda a América Latina.
Fica clara assim, a falibilidade do tema diante da saturação
e banalização da imagem. O discurso engendrado por
ambos os filmes não é assumido como manifestação
político-cultural diante de um estado de coisas, mas como
mera ilustração do visível, de registrar
apenas o que está na superfície e nunca além
dela. A tela de cinema se transforma em palanque, e a arte se
reduz ao mero discurso panfletário.
O cinema diante da multiplicidade de olhares
No Meio do Rio entre as Árvores,
de Jorge Bodanzky (Brasil, 2010)
Bicicletas de Nhanderu, de Ariel Ortega e Patrícia
Ferreira (Brasil, 2011)
O longa de Jorge Bodanzky, No Meio do Rio Entre as Árvores,
busca uma aproximação entre a câmera e as
pessoas de algumas comunidades ribeirinhas do alto Amazonas. A
idéia é a de que o registro daquela comunidade surja
de dentro, com os próprios ribeirinhos filmando seu cotidiano,
direcionando as câmeras para o que realmente lhes importasse.
O filme, entretanto, parece quebrado. Não há nenhuma
articulação entre o olhar externo - do diretor e
de sua equipe - e o olhar dos próprios ribeirinhos, eles
sim extremamente conectados com o meio que os cerca. Não
se vê ali nem o filme de Bodanzky, nem o filme criado pelos
ribeirinhos. Vê-se apenas uma dificuldade em se articular
uma montagem, em buscar um registro mais orgânico cujo olhar
refletisse a essência da vida dos ribeirinhos. Um olhar
de cinema, acima de tudo. O discurso é quase todo construído
com entrevistas desinteressadas, pela descrição
verborrágica dos costumes, do dia-a-dia. É a fala
pela fala, intercalada por imagens da natureza, enquanto somos
informados das dificuldades dos ribeirinhos em se manterem frente
ao avanço tecnológico e ao esquecimento a que foram
condenados.
Nesse sentido, não deixa de ser uma bela surpresa
a exibição, no mesmo dia, de Bicicletas de Nhanderu,
média produzido pelo projeto Vídeo nas Aldeias.O
projeto tem uma proposta semelhante a de Bodanzky, entretanto,
a diferença entre os filmes é de outra ordem: de
um lado, há necessidade do registro puro e simples, do
factual, da inérica do olhar diante do objeto filmado;
de outro, há
o olhar provocado, a idéia da câmera como cúmplice,
da imagem construída, pensada, improvisada. De filmar o
invisível, o cosmos, as ambiências, o metafísico;
de materializar o místico; da intimidade da comunidade
com o manuseio da câmera, na escolha dos planos, do momento
exato de captar alguns momentos genuínos. Bicicletas
de Nhanderu atinge um nível tão soturno de
imersão, de construção diegética,
que por vezes faz lembrar os filmes de Naomi Kawase, fugindo o
tempo todo desse cinema calcificado, documento inerte, científico,
pedagógico, cujas imagens se tornam descartáveis,
banais, aprisionadas em si mesmas. Boa parte da força
do filme vem também da escolha certeira dos personagens,
que transitam e interagem com a câmera de maneira extremamente
orgânica e por vezes, surpreendente. Seja pelo pajé
que guia o olhar místico do espectador e de toda a comunidade,
seja pelas crianças - verdadeiros showmen em cena
- que travam uma relação de aproximação
e cumplicidade muito forte com a câmera.
O título do filme se refere à frase avassaladora
dita pelo pajé da tribo Mbya-Guarani: "os seres humanos
são as bicicletas dos deuses". A câmera aos
poucos irá desenhar uma história de espiritualidade,
onde deuses e homens parecem conviver em equilíbrio, ainda
que confrontados com uma modernidade que insiste em afastá-los.
São imagens carregadas de um primitivismo, de uma curiosidade
diante do mundo, de um desnudamento do olhar imprescindível
para que se construa uma genuína representação
que nasce da própria apreensão do olhar daquela
comunidade diante do mundo. É a força do olhar,
preexistente ao cinema e ao aprisionamento da imagem pela câmera.
A margem da imagem e seus desvios
O Desejo da Vila Changhu, de Xia
Chenan (China, 2011)
O cineasta Xia Chenan acompanha uma família na província
de Gansu, onde um oásis está prestes a secar, provocando
a desertificação completa daquele local. Chenan
constrói todo um universo em torno daquela família,
privilegiando o espaço cênico e o poder avassalador
desse espaço sobre os personagens. Há um amarelo
sufocante e ameaçador, que toma conta de todo o quadro
da tela, inundando a vida daquelas pessoas: a areia, o vento,
o tempo.
Todo o filme gira em torno de Dong Dong, filho mais novo dessa
família de camponeses para quem o filme direciona seu olhar.
É um olhar que se constrói no limite entre o factual
(as entrevistas são dirigidas de maneira a simular um momento
reflexão de cada personagem sobre aquele lugar, sem que
pareça haver qualquer interferência do diretor ou
da equipe) e
o ficcional, uma vez que esse registro documental ganha todo um
corpo imagético, seja pela provocação das
situações por quais passam os personagens (o cachorro
de Dong Dong deixado no meio do deserto), seja pela arquitetura
dos enquadramentos, pela fotografia ou pela trilha sonora,
para criar uma obra de imersão, de aproximação
e enlace com aquelas pessoas, e dali extrair uma poesia da vida,
da melancolia, da morte de um lugar e da necessidade de sobrevivência
de uma família. Chenan não está interessado
no choque provocado entre documento e ficção. Há,
acima de tudo, um desejo de apreensão de um sentimento,
de algo que está além do visível, de um estado
de falência da natureza e do mundo diante do homem e da
civilização. O plano final - o mais belo de todo
o festival - olha para a incerteza de um futuro, de
uma desilusão esperançosa diante das mudanças
pelas quais a natureza ao redor do mundo tem passado.
A Terra da Lua Partida,
de Marcos Negrão e André Rangel
(Brasil/Índia, 2010)
A Terra da Lua Partida é um exemplo de desgaste desse
dito documentário-ficcional que parece se encontrar num
momento de saturação da linguagem. Os diretores
Márcio Negrão e André Rangel parecem demasiadamente
conscientes dessa proposta fronteiriça que costura o filme.
A idéia incessante da encenação, parece colocar
o artifício acima da realidade de um povo milenar que vive
aos pés do Himalaia e sofre com as alterações
climáticas provocadas pelo aquecimento global. Construído
como melodrama, o filme sofre com as interferências incessantes
de uma trilha sonora melosa e grandiloquente, que insiste em sublinhar
alguns momentos chaves do filme.
O esmero com as imagens, com a fotografia e os enquadramentos
não são suficientes para esconder uma certa dificuldade
que o filme tem em estabelecer uma sutura mais profunda entre
o sujeito, matéria-prima fílmica, e seu interlocutor
observador. Essa artificialidade, ao mesmo tempo que exerce um
certo prazer estético, revela um abismo que coloca em lados
opostos o desejo do controle estético e o registro indomável,
intempestivo da realidade. O que se percebe é uma certa
incredulidade dos próprios cineastas na capacidade que
suas imagens têm de provocar o público, e numa necessidade
latente de sublinhar e ressaltar os momentos de catarse do filme.
A imagem da verdade que morre com a ficção.
O olho que é só do cinema
Alimentar a Besta (Nourrir L'Animal),
de S. Louis (França, 2009)
Esse curta em competição, do francês S. Louis,
é talvez a melhor expressão do que pode ser essa
nova maneira de se pensar o documentário como forma de
observação visceral e incisiva sobre o espaço
e o mundo. Se o filme provoca um choque, um estrondo tão
ensurdecedor, é porque S. Louis transforma o discurso ambiental
em representação fílmica, criando uma violenta
metáfora visual sobre o impacto industrial numa vila da
Alsácia no interior da França, que substituiu toda
a mão de obra local por enormes máquinas de reciclagem
que mastigam, destroçam e vomitam papel como uma espécie
de monstro devorador. Alimentar o Animal é um
processo de observação detalhista, quase que uma
miniatura daquelas extensas e minuciosas experiências de
Frederick Wiseman. Há um apartamento vazio, coberto de
entulhos e lixo, e um cachorro que tenta sair dali - talvez queira
se alimentar. Há uma rua vazia. Um barulho estrondoso.
Há uma fábrica. Uma máquina. S. Louis desconstrói
as engrenagens dessa máquina de moer papéis, carregando
as imagens de uma violência latejante, que em alguns momentos
parece desconcertar quem assistem ao filme. Alimentar o animal
é alimentar toda essa máquina que destroça
sonhos e vidas em nome de um progresso mecanicista e vazio. Há
uma consciência radiante da câmera como o além-do-olho,
da câmera que enxerga muito além do visível.
O Som do Tempo, de Petrus Cariry (Brasil, 2010)
O curta do cearense Petrus Cariry começa com uma citação de "Grande Sertão: Veredas" de Guimarães Rosa: "O sertão está em toda parte; o sertão está dentro da gente". Essa afirmação rege toda a construção diegética do filme em torno da personagem - uma senhora que executa as tarefas diárias de uma legítima dona de casa do sertão pernambucano - e sua relação com os sons e o espaço que a rodeiam. Cariry cria um registro de dentro para fora, orquestrando som e imagem da rotina daquela velha mulher, da água que espirra com o lavar das roupas, da espuma que se forma no chão, dos pequenos detalhes, até o momento em que se enquadra o macro para dar conta dessa idéia de permanência que Petrus Cariry busca na citação de Guimarães Rosa. O Som do Tempo é, então, um registro de um sentimento sertanista que está além da própria existência, além da própria capacidade de ver. É um sentimento que revela antes de mais nada um estado de espírito. É o registro do físico para a expressão do indizível, do invisível, do intangível. Algo que só mesmo o olho mágico do cinema pode captar.
Julho de 2011
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