ensaios - balanços dos festivais
Memória cheia Ao
fim da memória e da história, o cinema sobrevive por
Paulo Santos Lima
Passado mais de meio século
após Alain Resnais dissertar, em filmes comoAs Estátuas Também Morrem,
Noite e Neblina e Hiroshima Mon Amour, sobre a transitoriedade da
memória e o quanto ela se estabelece como um culto intimista sem conseguir alcançar
ou reproduzir a experiência à qual ela está conectada, alguns filmes contemporâneos
não só retomam o assunto, como lhe decretam um juízo final. Agora, além de sublinhar
a natureza limítrofe e gasosa da memória e dos fatos que ela está a relembrar,
comenta-se algo bastante total, ou totalizante: o próprio fim da memória. Que
é, por fundamento e conseqüência, o fim da história, e da História. Nada
inédito, isso, mas é bastante curioso (e sintomático) que uma meia dúzia de filmes
assinados por diretores reconhecidos, alguns deles geniais, consiga se intercomunicar
a ponto de criar um discurso consecutivo. Assim, se Olivier Assayas introduz o
assunto com seu Horas de Verão, Coppola experimentará os deslocamentos
mentais em Velha Juventude, Gondry e Jia Zhang-ke defenderão a memória
fake encenada, Soderbergh se apropriará de um fato antepassado, quebrando
sua conexão natural para falar de hoje, e Bonello, finalmente, concluirá em seu
Na Guerra a discussão, proclamando um desvínculo com tudo o que é ou alude
ao anterior. Não é coincidência que esses cineastas sejam adeptos de um cinema
formalista que, se não rompe definitivamente com o realismo e até trava diálogo
com ele, é bem mais interessado por uma construção livre, mais ligada ao objeto
em si do que seu significado. Não há mais a possibilidade de ver a memória e a
história como elementos monolíticos e auto-sustentáveis. Não é à toa que um filme
como Katyn surja tão fora de esquadro no contexto atual, com Andrzej Wajda
reproduzindo um evento passado na certeza de que seja possível recuperar
a experiência, jogando na tela uma xerox de algo acontecido sem pôr em xeque,
mas sim acreditando nessa reconstituição justiceira. Alguém ainda acredita numa
“memória soberana”, que sirva de canal direto para uma vivência anterior? Memórias
incertasNem
Dominic Matei, em Velha Juventude, de Francis Ford Coppola, consegue consertar
o passado. Ele, que rejuvenesce após um raio lhe atingir em cheio, potencializa
o seu vasto conhecimento universal, ganha poderes outros etc, mas jamais conseguirá
reescrever sua história. Porque, antes, há uma lógica científica que barra essa
condição quase surrealista: que é a própria cronologia. O surgimento de um duplo
de Dominic será o caminho possível para a alucinação (bem sabemos, a duplicata
é crível numa razão matemática, mas improvável num contexto existencial-psicológico-cultural),
mas não para a restauração. Assim, com esse duplo sendo seu espelho fantasmagórico,
Dominic ingressará num delírio total que é, sobretudo, o resultado de uma fusão
entre passado, presente e projeto. O passado e o futuro sendo, assim, uma projeção
– como o cinema, que projeta imagens que chegam loucas ou não quando tocam na
tela, e que Coppola magnificamente mostra neste longa tão cheio de imagens manipuladas,
distorções, barroquismos soberbos. A memória é algo de foro
íntimo, portanto, e Olivier Assayas se voltará ao Resnais de Muriel para
chegar à centro histórico de uma família em Horas de Verão. No filme de
1963, a protagonista Hélène é prisioneira de uma lembrança extremamente afetiva
e ótima, mas que jamais será revisitada, mesmo com a chegada do antigo amante.
O apartamento que é moradia e também local de trabalho, um antiquário, é a desconjunção
plena, com objetos deslocados e perdidos em seu anonimato. As lembranças de Hélène
são fantasmas na mesma medida que o passado recente da incursão medonha da França
na Argélia (ou Muriel) também assombra o enteado da personagem. Essas afetividades
correspondem ao modo como a matriarca de Horas de Verão enxerga a casa
de veraneio e seus objetos. Ainda que haja ali uma beleza suprema, inclusive com
não poucas obras de arte, o valor trespassa a experiência da personagem
(que, aliás, chama-se também Hélène) com toda essa memorabília. Sua morte torna
aquele lugar sublime, que lhe era tão referente com suas peças belas naquilo que
se referiam aos afetos e lembranças de Hélène, num grande apanhado de objetos
etiquetáveis, itens mercantis destituídos de suas funções genuínas e de sua história,
e não muito diferentes da casa fantasma da Hélène de Resnais. Como dizia o curta
As Estátuas Também Morrem (1953), os objetos, sobretudo num museu, jamais
resgatam os rostos, o cotidiano, os sentimentos, os dramas – enfim, a experiência
– de quem os confeccionou ou utilizou. A própria casa deixa de ser de verão para
ser palco de uma festa adolescente, e os quadros e vasos deixam de ser enfeites
e vasos para servir de moeda de troca no mercado das artes. Se
o passado é um apanhado de peças coladas e interpretadas subjetivamente, pela
memória de cada um (ou por uma memória coletiva, identidade acordada, como os
museus acabam fomentando), por que então procurar pelo impossível: o passado “real”?
O repertório de um tempo jamais permanecerá intacto, e, nessa inevitável impureza
e transmutação, a reprodução se estabelece como único motor viável. Pois num acontecimento
ocorrendo em tempo real, e em velocidade turbo, o minuto anterior já é um passado
irrecuperável. É meio isso que está nos filmes de Jia Zhang-ke, como Plataforma
e Still Life, ambientados e falando de uma China a todo vapor desenvolvimentista,
fazendo arrimos ao passo em que larga para trás histórias humanas, amores, culturas
e percepções. 24
City é, além do nome deste mais recente filme do cineasta, um moderno conjunto
habitacional que toma o espaço de uma fábrica bélica. Seguindo pela pauta documental,
o filme registra depoimentos de antigos funcionários, que contam suas histórias
à câmera. A memória é o que restou de mais concreto em meio à ruína da fábrica
desmantelada. Por isso, é lícito que a encenação tome conta do documentário, inclusive
se recorrendo a personagens fictícios, fusões referenciais que trazem a atriz
Joan Chen fazendo o papel de uma operária “parecida com Joan Chen”. É um desdobramento
não muito distinto de Dominic e seu duplo em Velha Juventude, e que ainda
promove uma idéia de “vale tudo” que justifica uma construção dramática que mantém
sólido o discurso e aquilo sobre o que ele está a falar. É uma resistência contra
a inevitável morte – a perda da memória, da memória que é, enfim, o que sobrou
das cinzas humanas. Michel
Gondry é mais simplório, mas bem mais direto, em seu Rebobine, Por Favor.
Uma pequena locadora de VHS está em crise diante do surgimento revolucionário
do DVD. Seu fechamento significaria o fim de um estilo de vida, de uma vizinhança
e uma cultura de bairro. O risco vem, também, da não importância das pessoas para
a própria tradição do local, pois o edifício que sedia a locadora e que foi embargado
seria supostamente o local onde um grande músico de jazz, Fats Waller, nasceu
e morreu. Na emergência, o dono da loja e seus amigos e clientela decidem rodar
um filme reconstituindo a vida de Fats, e agregando um (falso) valor histórico
ao local. Sob a ameaça de extinção, forja-se uma memória, portanto. Se este filme
de Gondry celebra uma idéia de passado ilustre, o que está em foco é justamente
a fabricação de uma “memória”. É, decerto, a dessacralização do fato histórico,
do acontecido, e mais vale o presente mostrado. Ou o futuro: a vida de Fats Waller
servirá de sobrevivência e, quem sabe, para os novos tempos que aparecem titânicos
no horizonte. O
passado histórico servindo ao presente, ao futuro, enfim, pouco importa. O acontecido
é uma apropriação feita no instante que vem sempre depois. Daí que Steven Soderbergh,
mesmo recorrendo a uma cartilha realista, obedecendo certos cânones biográficos,
deixou vazar para dentro de seu filme os paradigmas transtornados dos anos 2000
em seus dois Che. Ainda que longe da ingenuidade, não parece que o diretor
quisesse deliberadamente se apropriar do Ernesto Che Guevara para se posicionar
politicamente hoje (como eu já escrevi em texto sobre o filme),
mas o que ascende à tela é uma negação total ao processo histórico, e, ao negá-lo,
despreza-se o contexto no qual Che insurgiu com seu projeto revolucionário. Che
torna-se um objeto utilizável, um boneco trazido para agora e cumprindo novas
funções. Apesar dos formalismos, Soderbergh opta, sobretudo no segundo filme,
por um registro “realista”. O que funda uma derradeira morte da reprodução histórica
objetiva – e, disso, a inutilidade da revisita; no máximo, uma retroação. Na dialética
entre os dois filmes, fica clara a impossibilidade da ação revolucionaria, mas
a tal “reprodução fidedigna” dos acontecimentos é uma farsa – farsa porque é
uma impossibilidade. O olhar é atual, e, vista por esses olhos de hoje, a vida
de Che nega o próprio Che... o Che mito e o Che agente histórico. Na
avalanche de eventos e informações que nos chegam às pencas e fraturados, aos
estilhaços, não há muito sentido em se voltar para trás, parece. O passado seria
mais uma peça a ser reencaixada em outro quebra-cabeças, um novo jogo de armar
que renega seus componentes. Soderbergh, ao manter certa fidelidade às regras
reprodutivas, parece ter confirmado em seu Che que a questão estaria noutro
ponto que não o da reprodução ou subjetividade. Esse quinteto de longas, assinado
pelos geniais Assayas, Coppola e Zhang-ke, por um respeitável Soderbergh e por
um esforçado Gondry, e todos eles bastante sensíveis ao que lhes está ao redor,
o mundo, aniquila uma idéia de passado intacto na medida em que a memória que
faz a ponte entre ele e o presente é de uma materialidade inesperada. Adiante,
por favorChega-se,
assim, a uma questão vetorial: seguir em frente. Chega-se, por conseguinte, ao
Na Guerra de Bertrand Bonello, que certamente é dos cineastas hoje que
mais se expõem através de sua obra. Seus últimos dois longas, O Pornógrafo
(2001) e Tiresia (2003), tratavam de seres perdidos na esteira da história,
cuja agulha da bússola ficou perdida nos revolucionários anos 60. No filme de
2001, tínhamos o impasse. No outro, a (auto)destruição. Agora, em Na Guerra,
temos uma descoberta, um novo diálogo. O personagem Bertrand, que possui o mesmo
nome e profissão do cineasta Bertrand Bonello, órfão de uma leitura de vida e
mundo que lhe faça sentido, encontra uma nova razão. Numa comunidade alternativa,
professa-se pelo desquite ao que se viveu até agora. O sexo não será mais o mesmo,
nem mesmo a relação com as coisas, tampouco a percepção das coisas. Na prática,
encontra-se a beleza em coisas aparentemente banais, o prazer erótico mais pelo
abraço do que pela penetração, a música que interage seres e natureza. Não é como
as comunidades hippies, uma vez que aquele modelo já tinha extinguido e sua falência
estava ligada à perdição dos personagens dos outros filmes, sobretudo ao cineasta
de O Pornógrafo, Jacques Laurent. Agora é a negação ao passado, a tudo
o que foi determinado antes mesmo do nascimento: o gestuário, os valores, os arquétipos,
as sociologias etc. Antes, procurava-se o elo perdido do
processo histórico. Agora, constatada a fratura do encadeamento (o fim da história),
resta seguir em frente, lançar-se à “irreferência”. Porque é justamente isso:
a referência, que diz respeito ao já vivido, ao passado, à memória, ao predito,
é uma impossibilidade. O próprio personagem do longa de 2001, Jacques Laurent,
era interpretado por Jean-Pierre Léaud, ator dos tempos áureos, das barricadas
de Maio de 68, de Truffaut e Godard, e cuja analogia é inevitável. O exercício,
em O Pornógrafo, era pensar o presente ainda com o coração no passado.
Em Na Guerra, é Mathieu Amalric quem faz o protagonista Bertrand. Amalric,
ator cujo talento assombroso eclodiu nos anos 2000, não inspira olhares além deste
presente histórico. A única referência é ao Apocalypse Now (1979) de Francis
Ford Coppola. Coincidência ou não, é certo que Bonello, na própria estrutura de
seu filme, olha para a terra arrasada do presente e arrisca um largo e arriscado
passo para o futuro. Tal avanço vai ao encontro de um delírio
inominável, experiência sensorial e formalismos estéticos que arrancam o filme
do trilho temporal. O delírio de Bertrand, refazendo o Willard selvagem de Apocalypse
Now conecta múltiplos tempos, apreensões, memórias recentes ou perdidas, sem
deixar de colar Willard a Dominic. Filme que indubitavelmente promove o rompimento
com o que já nos foi dado, Na Guerra recupera, no sobrevôo que faz ao Coppola
dos anos 70, uma certa herança com o já vivido, com a tal experiência perdida
que retorna esdrúxula na reprodução memorialística mas que faz presença em alguma
interzona que nos escapa. É o filme que, de fato, dá de ombros para toda essa
discussão e propõe um cinema de imagens irreverentes e sem subterfúgios: vai-se
direto a algum lugar, a um ponto que parece fora do mapa e do tempo. Bem em sintonia
com esse nosso momento histórico que prefere os estilhaços aos encaixes. Novembro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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