in loco - fest curtas BH 2009
Um festival em crise
(não deveriam todos eles estar em uma?)
por Rodrigo de Oliveira

O 11º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte aconteceu entre os últimos dia 7 e 13 de novembro sob o signo de uma crise. Para além daquela mesma que se deu com virtualmente todos os festivais de cinema brasileiro no último ano (o caos econômico-financeiro mundial que se refletiu diretamente na retirada de investimentos do setor), mas, sobretudo, se tratou aqui de uma crise de identidade. Como todos os festivais que acontecem sob a batuta de uma instituição pública (no caso de Belo Horizonte, a estrutura do Palácio das Artes e da Fundação Clóvis Salgado, órgãos ligados à administração estadual), o Fest Curtas BH sofreu com ingerências, disputa política, falta de verba oficial e um certo descaso.

Produzido em caráter extraordinário em 2009, gestado e levado adiante “na marra” pelo diretor estadual do audiovisual, Daniel Queiroz, e cercado por um conselho curatorial formado por Helvécio Marins, Tiago Mata Machado, João Dumans, Eduardo de Jesus e o cinético André Brasil, o Fest Curtas BH trouxe uma programação auto-reflexiva, onde não só se propuseram discussões em torno da própria natureza e possibilidade de existência do festival, como também que impressão do cinema ele quer levar adiante ao exibir os filmes que exibe. Duas mostras paralelas deram a direção: “Vanguardas e Neovanguardas” exibiu cópias incríveis em 16mm do acervo da New York Film-Makers Cooperative, em que se viu de Samuel Beckett a Peter Kubelka, Brakhage a Maya Deren; e “Campo Imperfeito” fez um panorama da produção brasileira dos últimos 30 anos que trafega entre o cinema e as artes plásticas – alguns filmes-de-galeria e outros filmes-de-cinema (o que talvez prove que esse tráfego está longe de ser algo bem resolvido pelos artistas brasileiros – mas ainda assim há uma idéia de “imagem em movimento” ali muito firme em seus propósitos e segura de seus efeitos, ainda que a constatação de que um Arthur Omar da vida, lá em 1979 com Vocês, já tenda levado a conversa para muito além daquilo com que os jovens realizadores ainda parecem se debater atualmente).

A produção de curta brasileiro contemporâneo ficou restrita a uma mostra retrospectiva de 2008, sem uma competição como a que já era tradicional no evento. Foram exibidos alguns dos filmes inescapáveis da safra passada (Superbarroco sendo o mais exemplar deles) e alguns dos melhores mesmo (Triangulum, o OVNI gaúcho-alemão-egípcio de Melissa Dullius e Gustavo Jahn). A programação internacional convidou quatro dos mais significativos festivais do mundo para montar sessões específicas que traduzissem seu olhar (e, eventualmente, pudessem iluminar BH na busca de seu próprio): o alemão Oberhausen, o suíço Locarno, o argentino Bafici e o lusitano Vila do Conde. Todas estas eram tentativas de afirmação de uma identidade perdida, e, ao mesmo tempo, sinais muito claros que nada de fato se perdeu em onze anos de história – tudo se transforma ou se copia, e aqui valem as duas coisas.

Uma questão de escolha

O espaço de meta-discussão mais importante do Fest Curtas BH foi aquele em que se reuniram representantes de alguns dos festivais mais fortes do calendário nacional e local para se discutir, afinal, se ainda valia à pena insistir na idéia de um espaço anual para o curta-metragem na capital mineira. À resposta óbvia (“sim, claro!”) seguia-se um ruído, manifestado por Raquel Hallak, diretora dos festivais de Tiradentes, Ouro Preto e do CineBH: como pode um festival de cinema incomodar tanto? Raquel falava dos financiadores e do poder público, e nós estendemos a questão para os realizadores, o público, os pensadores de cinema.

Francisco César Filho, presidente do Fórum dos Festivais, jogou a bola no mato em seu primeiro comentário, tocando no que me parecem ser as grandes questões que envolvem a realização de um festival de cinema (sobretudo de curta-metragem): estamos falando sempre de um pulso firme de curadoria, que tenha propostas muito claras de programação, e de um outro lado estamos falando da estranhíssima e inescapável “formação de platéia”. No dia anterior, já ouvíramos Diego Trerotola falar dos hábitos que envolvem os espectadores do Bafici, festival que tem sessões lotadas e nunca abandonadas no meio em rigorosamente todos os filmes – sobretudo os mais difíceis, pensando na programação de um “cinema estética e conceitualmente independente, antes mesmo de sê-lo economicamente” – e da curiosidade pelo fracasso das grandes cadeias americanas de implantarem o sistema multiplex em Buenos Aires, porque lá simplesmente não se come e bebe dentro de uma sala de cinema, o barulho é irritante e atrapalha as projeções, claro, decretando o fim prematuro da cultura da bombonière na Argentina. Mas, sobretudo, “um festival de cinema tem que promover coisas que só se possam dar num festival de cinema”, nas palavras de Diego.

No dia seguinte, numa discussão sobre a nova cinefilia, Tiago Mata Machado ecoava um texto de Louis Skorecki em que se fala do amor pelo cinema como uma “instituição religiosa subterrânea dividida em capelas”. Ora, se há ainda um espaço sacralizado na recepção do fenômeno cinematográfico, um espaço que sofre muito menos com as intempéries do mercado no que diz respeito à relação de fidelização com o público, esse lugar é o festival de cinema. Ali ainda sobra a impressão de quarenta anos atrás do cinema como igreja, da sessão como culto, do debate como missa. Os mais bem-sucedidos festivais são aqueles que mais se dedicam a criar essa sensação religiosa – e se há algo determinante no sucesso de um festival como o de Tiradentes, por exemplo, ele está não só no respeito absoluto que as platéias devotam aos filmes em si, ainda dentro da sala (eliminando de vez a pecha de “público bem-formado” de Brasília ou Recife, por exemplo, onde se dá o exato oposto), mas também à presença de 200 pessoas na manhã do dia seguinte para se debater o filme – isso num lugar que nos empurra ao turismo o tempo todo.

As capelas, as seitas particulares dentro dessa grande cadeia da fé, e a natureza de cada um desses espaços, é o que define realmente que tipo de fundamentalista se está formando (sim, porque o caso com o cinema não pode nunca ser saudável: ele é tanto melhor quanto mais vivido como patologia mesmo, “doença benigna”). Novamente, foi Raquel Hallak quem melhor definiu isso que buscamos na curadoria de um festival: a questão está menos nos grandes filmes que cada um escolherá, no tipo de preferência que tentará transmitir a seu público e, eventualmente, no tipo de cinema com que se pretende catequizar seus rebanhos particulares. Outra vez: se há algum sentido em “formação de platéia”, ela só pode ter essas feições de ordenação mesmo, porque os convites gentis são muito menos respondidos que os chamamentos autoritários – isso da parte dos curadores, porque cabe aos filmes depois despejar a gentileza ou a hostilidade que preferirem, chamando o espectador para dançar ou obrigando-o a assistir à distância sua performance, tanto faz, o importante aqui é que estes filmes tenham a chance de fazê-lo, e de um curador se espera tudo, menos condescendência.

O problema, sobretudo em se tratando de festivais de cinema brasileiro, onde a oferta de filmes é bastante reduzida e sujeita a regras de inscrição, data de produção e planos de distribuição que afunilam ainda mais o gargalo, e especialmente no curta-metragem, onde cada grande filme traz a reboque cinco ou seis outros complicadíssimos (e em sua maioria ruins); enfim, o problema de uma curadoria não está em eleger os melhores, mas sim em marcar uma posição com os piores filmes: que tipo de incômodo está se querendo provocar no espectador uma vez que na grade de programação é impossível abrigar apenas obras-primas? Escolher bem os filmes problemáticos, e oferecer os problemas certos ao público, é tão importante quanto fazê-los comungar das unanimidades.

Cantar a sua aldeia

E se à generalidade da justificativa da “realização de um festival” se agregam todos esses valores que acabamos de dizer, a “realização de um festival em uma cidade específica” traz outras questões. O flerte com os espaços internacionais mais formadores da idéia do curta-metragem contemporâneo realizado pelo Fest Curtas BH este ano talvez tenha deixado passar o debate mais importante, que é o da relação de um festival com a produção regional. Este é um papel mais difícil que o de canal de recepção para um público afastado do eixo Rio-São Paulo, mas é preciso abrir espaço para o cinema que é feito no mesmo lugar em que o festival se dá. Nos últimos anos, BH realizou uma “Mostra Minas”, como o Curta Cinema realiza seu “Panorama Carioca” e o Kinoforum seu “Panorama Paulista”. Estive há pouco tempo no pequeno e agradável Festival Primeiro Plano, em Juiz de Fora, um espaço exclusivo para filmes de estréia, e as sessões da mostra regional eram, de longe, as mais procuradas pelo público – e penso ainda num outro festival, definitivo para a minha formação em cinema, o Vitória Cine Vídeo, onde os filmes capixabas também são os que mobilizam mais os espectadores.

Falo aqui para algo que está além da simples identificação e reconhecimento (“estas são as minhas histórias, estes são os espaços e os corpos que eu experimento cotidianamente”), e também de algo outro que não a sensação de convescote entre realizadores e seus amigos (todos sabemos, por exemplo, que problema é um prêmio de júri popular numa mostra regional, justamente pela sujeição à manipulação pequena dos resultados com claques particulares –nem o grandioso Festival do Rio está livre disso). O circuito de festivais, justamente por todas as demandas curatoriais, profusão de eventos e dificuldade de uma distribuição organizada por parte dos curta-metragistas, tende a ignorar o grosso da produção nacional. Um festival mineiro precisa ser, antes de tudo, um espaço onde se exiba e se discuta o cinema que se faz em Minas. Agregar uma competição nacional e outra internacional obviamente ajudam a pensar essa produção local em perspectiva, e cumprem um papel definitivo na exibição de um “cinema de ponta”, digamos. A outra ponta, no entanto, não pode ser negligenciada, e aí também inferem as questões do olhar da curadoria: inclusive em festivais menores, com filmes regionais em menor número, ainda é preciso fazer escolhas, ainda é preciso determinar que certo tipo de cinema terá espaço na tela em detrimento de outros, e aí também um festival pode atuar como se estivesse, ele mesmo, “fazendo cinema”.

É uma responsabilidade da qual os festivais não podem fugir, mesmo sob o risco de acusações de promiscuidade na seleção e na relação com os realizadores mais ou menos próximos. Há uma Minas Gerais sendo filmada ostensivamente, hoje, e é preciso entender como ela está sendo filmada, identificar estes observadores-registradores-encenadores, e chamá-los a defender suas próprias escolhas. Se um festival é, naturalmente, um espaço também do encontro entre cineastas, em lugares de produção tão apartada como Minas, onde há ainda a divisão entre os “núcleos comerciais” e os “núcleos de arte”, denominados assim pelos próprios personagens dessa divisão, ela só se superará uma vez que estes filmes sejam postos na arena pública, lado a lado, e então conversados, discutidos. O debate aí aparece como fundamental na operação desse circuito de produção-exibição. O que acontece também de único no espaço de um festival é a disposição das pessoas em não abandonar a sala tão logo a sessão termine: aproveitar a sacralização desse espaço significa, também, convencer o público de que todos os problemas que ele eventualmente tenha com aquilo que viu têm no próprio ambiente da sala um lugar preferencial para a resolução (ou recrudescimento, não importa). A presença de um sujeito numa sessão de filmes da vanguarda americana dos anos 60 ou dos filmes de um Carlosmagno Rodrigues não pode ser desperdiçada: se os filmes nos tratam aos berros, é preciso devolvê-los na mesma intensidade – gratidão é parte fundamental da experiência cinéfila.

O sonho que começa e termina a cada festival

E ainda assim, talvez o grande ressentimento de todos os festivais de cinema seja exatamente esse, o de que tudo o que se promove e se propõe em seu interior está fadado ao episódico, à celebração do extraordinário que dura sete dias e que morre na segunda-feira seguinte. Claro, os filmes permanecem (quando escolhidos para esse fim), mas o público muda, o dinheiro muda, e eventualmente ambos cessam. Das propostas de um futuro possível discutidas no 11º Fest Curtas BH, as mais importantes não foram tanto aquelas que tentavam assegurar a realização dele próprio (há um consenso na classe cinematográfica mineira e entre todos os realizadores e a “gente de cinema” do país de que sim, ali está um dos grandes espaços para o cinema brasileiro entre todos), mas sim a perpetuação desse material de que um festival é feito – filmes e espectadores. Do Festival de Vila do Conde, o português Nuno Rodrigues trouxe a Agência do Curta-Metragem, uma bastante bem-sucedida iniciativa de distribuição de filmes no formato, e eis aí um espaço possível para Belo Horizonte. Não exatamente o da criação de um órgão parecido (ainda que tentador seja), mas a discussão em torno do “mercado” brasileiro para o curta-metragem – e há um, evidentemente, ainda que ele não funcione sob as mesmas regras do mercado do longa.

E só há um porque há esse circuito de festivais, porque formou-se uma cadeia gigantesca de cineclubes espalhados literalmente por todo o país, porque existem canais de televisão interessados em exibi-los, porque existe a internet como meio de difusão. Continuar o papel da exibição na sala local, expandi-lo para as salas do mundo, fomentar uma idéia de distribuição firme e volumosa, profissionalizar o barroquismo voluntarioso a que muitas vezes estes filmes são obrigados a se sujeitar, talvez resida aí a nova fronteira dos festivais de curta-metragem no Brasil. Belo Horizonte lançou o problema, e quando 2010 chegar (e ele chegará, forte e importante como sempre foi) talvez todas as questões estejam mais próximas de suas soluções.

Novembro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br

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