in loco -- festival de curtas de sp 2007 Latino-americanos:
gueto ou afirmação? por Cléber
Eduardo Na circunstância de mediador do debate com
os diretores latino-americanos no Festival Internacional de Curtas Metragens de
São Paulo, coloquei uma questão aparentemente simples e óbvia como introdução
à discussão, que, no decorrer das afirmações, discordâncias e polarizações dos
realizadores, acabou por revelar como a latinidade como um projeto identitário,
maior que a origem, é ainda um ponto nevrálgico para diretores dispostos a afirmarem
uma identidade estilística de seus olhares, não um vínculo com seus países como
forma de reconhecimento. Perguntei lá e repito aqui: o agrupamento dos filmes
latino-americanos em sessões à parte, que se pautam apenas pela origem e não por
outros critérios, não tem como efeito um isolamento desses filmes em relação aos
curtas de outras origens? Falo de um isolamento tão simbólico
quanto efetivo. Simbólico porque nas mesmas salas exibiu-se curtas brasileiros,
latino-americanos e internacionais. Em termos de espaço, estavam todos lá, em
convivência. Já em termos de conceito e de sentido político esse isolamento é
efetivo. Colocados somente entre “iguais de origem”, com todas as diferenças entre
os países de língua hispânica na América Latina, e com todas as distinções estéticas
entre os 32 títulos, esses filmes parecem guetificados – mesmo que se saiba que
a intenção de tal iniciativa é exatamente o contrário da guetificação. Ou seja,
agrupa-se todos em sessões de Latinos justamente para lhes dar visibilidade, de
modo a se exibir essa diversidade. Reúne-se como homogêneo – o universo latino
– para se expor diferenças No entanto, na prática, se alguns
desses filmes carregam traços mais evidentemente conectados a algum segmento de
sua sociedade/lugar, a maioria, fora os diálogos com diferentes sotaques de espanhol,
tem conexões tênues (ou nenhuma) com suas origens nacionais. Em um festival de
cinema (linguagem de intercâmbios e de relações entre filmes de diferentes continentes),
talvez pudessem estar em diálogo com filmes de outras procedências, onde as aproximações
se dariam por universos, tratamentos, olhares e procedimentos, não necessariamente
somente pela origem. Como resposta dos diretores, a expressão
da necessidade de afirmação estética. Embora uns e outros queiram transpor os
muros da latinidade cinematográfica tal qual firmada pela crítica e pela historiografia,
de modo a serem vistos por suas escolhas artísticas e não como parte de um projeto
de pertencimento a um país ou continente, a discussão sobre cinema político e
as supostas tarefas da latinidade artística evidenciou-se. Não se trata mais de
como construir uma imagem latino-americana, mas sim de como se construir imagens
na América Latina sem seguir padrões antecipados. Uns e outros afirmam, nas linhas
ou entrelinhas, a mesma coisa: os indivíduos precedem seus lugares, os diretores
precedem suas nacionalidades. A programação dos latinos,
com 32 curtas, foi, além de irregular em qualidade (mas com bons momentos), diversa
em propostas. Se uma característica predomina nesse conjunto, abrangendo quase
1/3 do total de filmes, é a variedade de narrativas com “premissas do absurdo”.
Há nestes curtas tanto a crise de lógica do mundo (como se esse estivesse já sem
senha para podermos entendê-lo), quanto crises de percepção – com personagens
perdendo essa tal senha de decodificação. Pode-se afirmar que, à sua maneira,
esse é um cinema da crise. Não de metáforas sobre a condição de suas sociedades,
embora essas marcas possam até aparecer aqui e ali, e sim de uma crise de se estar
no mundo. Algo mais contemporâneo que propriamente latino. Essa
crise pode também, eventualmente, dialogar com matrizes de cinema. David Lynch,
também referência (consciente ou inconsciente) de muitos curtas brasileiros, é
uma delas. Pode-se ver rastros de Lynch em Reality Show, do mexicano Alvaro
Brechner, assim como em O Que Acontece com Tedy?, do argentino Achille
Milone. O primeiro mostra a paranóia produzida pela imagem da tevê, uma imagem
na qual se acredita no filme como uma prova de verdade mesmo quando supostamente
antecipa uma experiência, e a manipulação do tempo narrativo. Poderia ser um filme
de Philippe Barcinski, evidentemente que com diferenças, mas dentro de lógica
aproximada. Já O que Acontece com Tedy? acompanha o pesadelo acordado de
um sujeito com o prazo de validade vencido: homem como mercadoria sem mais função. O
absurdo também pontua Fim do Trajeto, do mexicano Acán Coen, ambientado
em um ônibus onde uma relação de sexo entre motorista e passageira, mais estranha
que erótica, termina em um gesto de vingança banhada a sangue. A crise está incutida
nos gestos e nas sensações dos personagens. Vive-se em uma realidade de pesadelo
– mesmo registro de Taxista, da peruana Enrica Perez, que parte de uma
premissa neo-realista (o roubo de um táxi) para, a partir daí, entrar em universo
sórdido. Este tem menos a ver com a especificidade de indivíduos e mais com um
semente maligna espalhada pela sociedade, conforme a arrumação dos acontecimentos
no filme. Batidas do Coração (no original, Latidos), do mexicano
Daniel Andreu-von Euw, carrega essa atmosfera de loucura, da paranóia de Reality
Show e de O Que Acontece com Tedy?, adicionando um componente social
buñueluesco – uma empregada doméstica habitando a mansão abandonada dos
patrões. Se existe uma outra característica marcante nessa
produção selecionada para o festival, é o investimento em uma dramaturgia rarefeita
e a aposta na observação da câmera, sem, com isso, instalar tempos mortos na narrativa
e se atrapalhar com o fetiche da duração. Talvez os mais bem sucedidos projetos
desse cinema do mínimo e da retenção das experiências sejam O Quarto dos Fundos,
das uruguaias Letícia Jorge e Ana Guevara, e O Que Traz a Chuva, do chileno
Alejandro Fernandez Almendras. Nos dois filmes, a câmera concentra-se em um par
de personagens. Estão dentro de casa em O Quarto dos Fundos: uma adolescente
e uma velha aprontando-se para a noite de Natal. Estão também no campo em O
Que Traz a Chuva: um casal de idosos, a relação com a natureza, com o tempo
do lugar, filmado com rigor no enquadramento, com respeito aos silêncios das palavras,
com um naturalismo documental e quase fenomenológico. A câmera se instala nos
lugares, procura o encanto de situações banais. É menos importante o que mostra
daqueles seres que a forma de se olhar para eles. Amor
Precário, do argentino Ronny Trocker, segue essa linha. No entanto, ao contrário
dos outros dois, não sem formalismo. Há uma preocupação em se visualizar o espaço,
assim como em Lobos de Terra Fluvial, do chileno Ilán Stehberg, que às
vezes supera o interesse pelos personagens. Trocker parece claramente disposto
a evidenciar suas operações de construção do plano, muito próximo de procedimentos
do chinês Jia Zhang-Ke e do malasiano Tsai Ming-Liang. Os atores saem de cena
e a câmera permanece. Ou a câmera começa o plano e só segundos depois, eles entram
em quadro. Sem a mesma disposição de mostrar suas operações,
Elisa Miller, em Ver a Chuva, mostra um olhar especial para os detalhes,
filmando um casal de adolescentes com alta valorização do contato entre as mãos,
embora sempre de forma ligeira demais para se firmar sensações, e constrói um
“clima” dramático pela forma de armar as cenas (a da cozinha, com o garoto preparado
para fugir, olhando a mãe jantar, é ao mesmo tempo óbvia e delicada), dando à
sua narrativa um caráter também bastante contemporâneo: a vontade de se deslocar.
Enfim, se podemos fazer essa divisão entre essas duas frentes
principais, de um cinema do absurdo e de um cinema da observação, não se pode
ver nisso um traço hegemônico do curta-metragem latino, mas uma recorrência desse
momento evidenciada por essa seleção de filmes. Com outras maneiras de olhar,
essas características, no cinema contemporâneo, estão em filmes de outros continentes,
em curtas e longas. Em um mundo em permanente troca de imagens e de referências,
sobretudo em um mundo teoricamente cosmopolita como o do cinema, que vive em movimento
para além de fronteiras, essas questões tendem a se tornar do tempo histórico,
mais que de lugares. E isso não significa afirmar que as origens não pautam mais
nada. Elas são não são a única ou a mais importante referências para a maioria
dos diretores da nova geração. Apenas estão lá. Já faz uma diferença. Só não precisa
ser “a diferença”.
Setembro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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